Delze dos Santos Laureano[1]
Neste Natal de 2011 ganhei um presente inusitado!
Pelo meio do mês de dezembro fui surpreendida ao ler no blog do Professor José Luiz Quadros[2], de quem sou leitora assídua, um dos mais belos contos de Natal que já li. Vaidade à parte, o conto tem o seguinte título: A DELZE ACREDITA E LAURINHA TAMBÉM!
Nele o autor, Virgílio Mattos, escritor crítico e irreverente em suas provocações pedagógicas, conta a história de uma família acampada, que já na undécima hora da vida fértil e no desolador ambiente de um acampamento urbano, no qual as pessoas pobres desempregadas sequer são consideradas gente, ou mesmo reserva de mercado a ser explorada, descobre que vai ter mais um filho. Mostra Virgílio que a história se repete: tragédia e farsa. Há dois mil anos nascia pobrezinho (nisso eu e Laurinha acreditamos) Jesus de Nazaré, que de tão humano tornou-se divino. Deus se fez pessoa pobre para testemunhar um caminho de salvação. Vejam que contradição: nós procurando deuses para nos salvar. Deus, na contra-hegemonia do sistema, já sabe, há muito, que somente com humanidade há solução para os problemas humanos.[3] O modo como isso se dá? Destaca Virgílio, eu e Laurinha acreditamos numa parábola (obviamente ele permanece cético): o acontecimento da fecundação de uma virgem pelo Espírito Santo.
O texto do Virgílio mostra como em meio à pobreza exige-se das pessoas a mesma falsa moral burguesa. A ética violenta traz sofrimento pelo simples fato de se ter de explicar uma gravidez àquela altura da vida, ou até mesmo a coragem de se ter filhos sem as condições materiais mínimas, aos olhos, é claro, das classes altas, média e rica.[4] É assim mesmo. Aos pobres são impostos princípios morais e éticos que não são os deles. No modo de vestir, nas exigências para se manter a aparência física com o consumo de muito cosmético, totalmente incompatível com a remuneração que recebem pelo trabalho. Hipocrisia dizer que as pessoas têm de passar fome se não têm renda para comprar comida e que o furto é intolerável e deve ser punido com cadeia. Na lógica burguesa todos têm de pagar aluguel mesmo tendo de deixar de comer. Invadir a propriedade privada é um crime para eles e não deve ser tolerado. No entanto, os maiores invasores de terra são os ricos. Os poderosos são os que utilizam de forma predatória os bens naturais. Esse falso discurso ético da segurança jurídica protege mesmo são os muitos privilégios sociais em prejuízo dos mais pobres.
Com a família do conto do Virgílio não é diferente. Ao homem resta a opção dos biscates. À mulher o conformismo de uma vida de percalços e sustos, “mais sustos do que percalços”, ressaltou categórico o autor. E ao final falou a verdade. Eu acredito sim. Acredito que pobres têm o direito de ter filhos. Que o nascimento de toda criança é sinal da continuidade da espécie humana na terra, apesar de tantas atitudes suicidadas. Acredito em virgindade, que não significa hímen intocado, mas fertilidade sempre esperada, ainda que não confirmada. Eu, como o Gonzaguinha, "acredito é na rapaziada". Acredito na humanidade das pessoas apesar da coisificação de tudo em mercadoria. Essa que se tornou a salvação ilusória para todos neste momento da chamada crise do capital.
Por todo lado só se aposta na salvação pelo consumo, redução dos juros para os empréstimos, aumento das exportações, investimento em novas tecnologias. O discurso dominante de se manter o consumo, extraindo mais matéria prima para virar mercadoria, que vendida, consumida, mesmo sem necessidade, alimenta esse demônio voraz chamado mercado. De boca escancarada ele devora tudo rapidamente e pede mais mercadoria. Alimenta-se das forças da morte que trucidam essas pobres crianças que nascem todos os dias nas periferias do mundo, nas favelas, território urbano que sobra para os pobres e somente com muito esforço e tolerância diante das condições desumanas de vida, nas roças sem médicos e fustigados pelo avanço das monoculturas que abusam dos venenos. Nos acampamentos que são o resultado do “progresso”: apropriação dos lugares onde viviam as pessoas quando são tomados para as grandes obras para beneficiar os grandes mercadores e penalizar cada vez mais os pobres e a biodiversidade. Barragens, rodovias, portos, aeroportos para o progresso de uns poucos. Nas áreas inundadas pelas águas que sobram por cima de tanta impermeabilização irresponsável para manter o conforto dos donos da cidade.
Acredito sim, não em ídolos, mas no Deus da vida. Sou crente e também recorro ao professor Roberto Lyra Filho, que, citando o filósofo espanhol Ortega, ensina: as idéias são algo que adquirimos através de um esforço mental deliberado e com maior grau possível de senso crítico. A fé, sinônimo de coragem, é o que nos vem pela educação, pelo lugar que ocupamos na estrutura social. Por isso, eu acredito mesmo porque tenho consciência de classe. Creio na vida, na humanidade que celebramos em todos os natais. Eu acredito em tudo que decreta a morte da morte, enfrentando as forças hegemônicas do capital. Como Cervantes, sei que quem perde bens perde muito (veja as famílias que vivem nas áreas de risco e sofro com elas ao ouvir a chuva forte batendo na minha janela), quem perde um amigo perde mais (não podemos viver sem os nossos amigos, como você Virgílio, que, ao compartilhar às escancaras suas incomodações nos faz crescer), mas quem perde a coragem de ser centelha do divino perde tudo! O Natal nos fortalece na coragem, no agir com o coração, irando-se quando uma injustiça é cometida e se comovendo com a dor do próximo, seja ele de qualquer “cor”.
Assim, bem vindo o Natal! Precisamos de vida nascendo para o humano, não para a mercadoria. Nisso você acredita, eu e a Laurinha também. Vamos, como Menotti del Picchia, ouvir a voz da coisas. Elas mesmas estão gritando: NÃO COMPRE! Nesse Natal e nos outros não vamos mais cair na armadilha de que o aumento das vendas irá salvar o Menino nascido de uma mulher, mas que um dragão apocalíptico ameaçava devorar[5], dragão que, hoje, tem nome: capitalismo.
Feliz 2012 para toda a humanidade, com espiritualidade fraterna! É hora de sermos presença, presente de vida. Basta de presentes de materialidades, simulacro que deturpa o sentido verdadeiro do Natal. Como os magos que, seguindo uma estrela, foram visitar o menino Jesus, urge seguirmos por outros caminhos.
________________________________________
[1] Advogada, professora, Doutoranda em Direito Internacional Público pela PUC MINAS; Integrante da RENAP – Rede Nacional de Advogados Populares; E-mail: delzesantos@hotmail.com
[2] www.joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot.com
[3] Lembro-me sempre dos conselhos de Menochi del Picchia, na Voz das Coisas, no poema Juca Mulato: “ Não fujas que eu te sigo...onde estejam teus pés, eu estarei contigo. Tudo é nada, ilusão.” A nossa humanidade nos segue desde o nascimento até a morte. Há muitos que ainda se acham imortais! Se sentem deuses, porque são ricos...
[4] É recorrente encontrarmos falas estúpidas que criticam as mulheres pobres que têm filhos sem as condições de educá-los. Chega-se ao absurdo de impor esterilizações forçadas ou até mesmo severas críticas ao exigir acriticamente o uso de contraceptivos para os pobres. Vemos sempre que quem critica gosta muito desses filhos de pobres quando se transformam em trabalhadores servis, os de baixa remuneração para os trabalhos mais desqualificados. O problema é quando esses filhos insurgem-se contra a ordem. Temos como exemplo os jovens pobres na França e Inglaterra que começam a incomodar ao resistirem às abordagens truculentas da polícia estatal.
[5] Uma mulher deu à luz um menino a quem o dragão tentou devorar. (Cf. Apocalipse 12,1-12)
segunda-feira, 19 de dezembro de 2011
A Delze acredita, a Laurinha também!
A DELZE ACREDITA, LAURINHA TAMBÉM!
Virgílio de Mattos
O velho trabalhador coça a cabeça desconfiado, que história é essa, logo agora, de um filho?
Embora a situação não esteja pra isso, afinal com a idade que tem nem as construtoras que estão laçando qualquer burro pro trabalho duro, se interessam pela sua experiência em fazer qualquer coisa com madeira, operário que, assim como seu pai, levou a vida inteira vendendo a única coisa que podia vender: sua força de trabalho. Está desempregado e velho. Inexoravelmente velho, desgraçadamente desempregado. E ainda por cima com um filho pra criar, logo agora?
Em qualquer outro final de ano do passado a notícia seria bem-vinda, mas agora, sem emprego e sem perspectiva, é que essa velha conformista vem dizer que está grávida?! Pensa alto um “merda” e segue martelando uns restos com os quais pensa em fazer um berço na frente do barracão que acumula as funções de casa e oficina, onde se lê FAZ TUDO, com o zê grafado ao contrário, como se estivéssemos lendo num espelho. José é um hábil artesão mas tem pouco contato com a escrita.
Nem as línguas mais maledicentes do entorno ousam falar mal dela, conformista conformada com uma vida de percalços e sustos, mais sustos do que percalços nessa época das águas destruindo tudo. Nem ela mesma acredita que esteja grávida quando pensava tratar-se da menopausa. E agora? Como é que vai ser? O que vai ser desse menino ou dessa menina?
Na ocupação crepitam esperanças como se fossem fogos de artifício, ainda que os planos repressivos estejam sempre prontos através dos tempos. Os poderosos raciocinam: “é só uma questão de tempo”.
Faz mais de dois mil anos que os filhos pobres dos pobres trabalhadores, sejam eles qualificados ou não, sofrem o mesmo tipo de exploração: a eles só restará vender a própria força de trabalho...
Faz muito tempo que Delze e Laurinha acreditam nessa fábula da mulher do carpinteiro ainda virgem ter engravidado do espírito santo. Mas eu sempre pensei que isso fosse uma fábula, ou quando muito uma parábola. Ninguém pode acreditar numa estória dessas através da história, não faz sentido.
Eu penso na dificuldade daquele carpinteiro explicar pros vizinhos da ocupação aquele filho. Penso nas tropas especiais da polícia procurando a criança pra ser destruída, penso nos barracos destruídos não pelas forças repressivas a serviço da exploração, mas pela burrice dos alcaides de plantão em pensar – poderosos de ocasião – que podem conter a força das águas com estupidez e concreto, grana por fora das empreiteiras e gana de acumulação.
Penso, sobretudo, nos idiotas que naturalizam essas questões com o mais estúpido ainda “sempre foi assim”. E que transformam o aniversário de um deus que Laurinha e Delze acreditam na verdadeira festa dos comerciantes.
NÃO COMPRE!
Nesse natal e nos outros não caia na armadilha, esteja preparado para denunciar as religiões, essa droga poderosa, e, sobretudo, a epidemia de falta de solidariedade – esse atoleiro – que pululam como cogumelos nessa época das águas.
Despreze as ilusões, leitor molhado, prepare-se pra luta. Nisso também a Delze e a Laurinha acreditam, e você?
Virgílio de Mattos
O velho trabalhador coça a cabeça desconfiado, que história é essa, logo agora, de um filho?
Embora a situação não esteja pra isso, afinal com a idade que tem nem as construtoras que estão laçando qualquer burro pro trabalho duro, se interessam pela sua experiência em fazer qualquer coisa com madeira, operário que, assim como seu pai, levou a vida inteira vendendo a única coisa que podia vender: sua força de trabalho. Está desempregado e velho. Inexoravelmente velho, desgraçadamente desempregado. E ainda por cima com um filho pra criar, logo agora?
Em qualquer outro final de ano do passado a notícia seria bem-vinda, mas agora, sem emprego e sem perspectiva, é que essa velha conformista vem dizer que está grávida?! Pensa alto um “merda” e segue martelando uns restos com os quais pensa em fazer um berço na frente do barracão que acumula as funções de casa e oficina, onde se lê FAZ TUDO, com o zê grafado ao contrário, como se estivéssemos lendo num espelho. José é um hábil artesão mas tem pouco contato com a escrita.
Nem as línguas mais maledicentes do entorno ousam falar mal dela, conformista conformada com uma vida de percalços e sustos, mais sustos do que percalços nessa época das águas destruindo tudo. Nem ela mesma acredita que esteja grávida quando pensava tratar-se da menopausa. E agora? Como é que vai ser? O que vai ser desse menino ou dessa menina?
Na ocupação crepitam esperanças como se fossem fogos de artifício, ainda que os planos repressivos estejam sempre prontos através dos tempos. Os poderosos raciocinam: “é só uma questão de tempo”.
Faz mais de dois mil anos que os filhos pobres dos pobres trabalhadores, sejam eles qualificados ou não, sofrem o mesmo tipo de exploração: a eles só restará vender a própria força de trabalho...
Faz muito tempo que Delze e Laurinha acreditam nessa fábula da mulher do carpinteiro ainda virgem ter engravidado do espírito santo. Mas eu sempre pensei que isso fosse uma fábula, ou quando muito uma parábola. Ninguém pode acreditar numa estória dessas através da história, não faz sentido.
Eu penso na dificuldade daquele carpinteiro explicar pros vizinhos da ocupação aquele filho. Penso nas tropas especiais da polícia procurando a criança pra ser destruída, penso nos barracos destruídos não pelas forças repressivas a serviço da exploração, mas pela burrice dos alcaides de plantão em pensar – poderosos de ocasião – que podem conter a força das águas com estupidez e concreto, grana por fora das empreiteiras e gana de acumulação.
Penso, sobretudo, nos idiotas que naturalizam essas questões com o mais estúpido ainda “sempre foi assim”. E que transformam o aniversário de um deus que Laurinha e Delze acreditam na verdadeira festa dos comerciantes.
NÃO COMPRE!
Nesse natal e nos outros não caia na armadilha, esteja preparado para denunciar as religiões, essa droga poderosa, e, sobretudo, a epidemia de falta de solidariedade – esse atoleiro – que pululam como cogumelos nessa época das águas.
Despreze as ilusões, leitor molhado, prepare-se pra luta. Nisso também a Delze e a Laurinha acreditam, e você?
quinta-feira, 6 de outubro de 2011
Usina de Belo Monte - um crime ambiental do nosso tempo por Antônio Claret
Altamira: primeiras impressões
Contra a força destruidora do capital somente a força soberana do povo organizado
Antônio Claret Fernandes*
O mineiro carrega consigo a nostalgia das montanhas, mesclada de saudade, por antecipação, um pouco de desconfiança e certa ironia. É Assim, pois, que chego a Altamira, essa cidade banhada pelo imponente Xingu, ameaçado pela prepotência do Capital.
Outrora aprendi que homem não chora. Não é que chorei nesses poucos dias, mas a saudade é grande! Nomes de pessoas, antes comuns e corriqueiros, agora me invadem a mente e se apresentam como memoráveis. Muito particularmente, o soluço e os olhos lacrimejados de minha mãe, ela que é tão forte, não me sai da memória. Sua voz, cheia de fé, ainda soa em meus ouvidos: ‘Nossa Senhora acompanhe você!’.
Embora não seja muito dado à inovação tecnológica, procurei sondar pessoas do ramo e, com toda a falta de jeito - pela índole matuta e camponesa -, percorri algumas lojas de celulares em Altamira e, por fim, cadastrei-me num plano da Vivo pelo qual se pode falar um minuto para qualquer parte do Brasil por cinco centavos.
Passei o número imediatamente para algumas pessoas amigas e, via e-mail, mandei um recado: ‘se precisar ligar, esse é o telefone!’. E coloquei o número! Confesso que poucos minutos depois, e por diversas vezes seguidas, sempre que me lembrava do celular, abandonado sobre a cama, ia ao quarto e olhava se não havia alguma chamada. Na verdade, estava louco que alguém ligasse!
Cansado de aguardar, coloquei o celular no bolso e, entretido com outras coisas, acabei até me esquecendo dele. E ele tocou! Sua vibração no bolso me deu um susto e, após um riso sem graça diante de um colega que percebera a reação, invadiu-me uma alegria imensa, pois, enfim, pensei, alguém está ligando. Olhei o número: desconhecido. À alegria seguiu-se um desapontamento diante da pergunta, do outro lado: ‘é a Celina’? E depois: ‘desculpe, foi um engano!’.
Tocado tão fortemente por aquele sentimento, me dei conta de que, aos 47 anos, nunca ficara mais que quatro meses seguidos fora de casa. Logo eu, que me achava bastante desprendido, quase sem parada certa, agora passando por essa ‘bobagem’; logo eu que viajara por diversos estados do Brasil, e por alguns outros países, agora me achava ali, doído de saudade. É que entre uma andada e outra se interpunha uma passada em casa, breve que fosse. O que agora eu sentia era, na verdade, uma espécie de saudade por antecipação: ainda que não se tivesse completado uma semana de nossa estada em Altamira, a previsão era para três anos, e isso me tirava do sério, e desconsertava.
Continuo convicto de que ‘nossa pátria é o mundo’, mas todo mundo precisa de um ninho; não para apegar-se, mas para ser-lhe referência, feito terra firme sobre os pés. E o novo ‘ninho’ está, ainda, em construção. Será no seio do povo, nosso aconchego e proteção.
Sentir a distância das pessoas queridas me despertou, de repente, o sentido da solidariedade, e resolvi passar uma mensagem para Dayana, bem longe e sem ir à sua casa há mais de dois anos. Ela faz medicina em Cuba pelo MAB num curso com duração de sete anos. Mas não deu certo! O endereço dela no computador devia ser antigo e a mensagem voltou.
Entre os nomes grudados na memória, alguns, às vésperas de nossa partida de MG, expressavam uma especial preocupação com a nossa segurança. E diziam: ‘cuidado com os índios’! Eu ria sem dizer nada. E agora rio sozinho, cada vez mais convicto de que, se há que se ter cuidado, é com os inimigos dos índios: barrageiros, madeireiros e muitas autoridades, prostrados de joelho frente à força do Capital. Esses são perigosos!
Altamira é uma cidade de contradições! O Xingu, banhando-a, oferece-lhe, gratuitamente, uma vista singular e, aos moradores e visitantes, uma orla aconchegante. Ali é o local do encontro, da convivência e descanso, em especial nos finais de tarde e à noite. Os namorados se encontram, encostados nos muros. As pessoas caminham, correm, e alguns fazem exercícios, espichando a perna sobre um banco e apertando o joelho. A brisa do rio contrasta com o mormaço e o sol escaldante.
Tirado esse cartão postal, que é bem cuidado, Altamira, semelhante às outras cidades da região, carece de políticas públicas elementares. O esgoto corre a céu aberto nos cantos das ruas. Parece não haver serviço de limpeza urbana. Em diferentes pontos, urubus disputam as sacolas de lixo, buscando alimento.
A periferia é pior! As áreas alagadiças, particularmente, onde residem muitas centenas de famílias, a situação é deprimente. Os esgotos, o lixo e, no período das cheias, a água parada sob as palafitas propiciam a incidência de diferentes vetores de inúmeras doenças graves. Essa população mais simples, por vezes em miséria, é a mais sofredora. Mas não perde seu encanto pela vida, manifestado no espírito da boa acolhida.
O mormaço de Altamira, como se fosse uma estufa, impõe uma especial característica às lojas: boa parte delas, particularmente as mais equipadas, dispõe de ar condicionado, por vezes de porta fechada com a inscrição: ‘empurre’! Andando pela rua, sob um sol de rachar, entrei diversas vezes numa ou noutra loja; não para comprar, que não sou desse feitio, mas para me refrescar um pouco naquele ambiente.
As contradições de Altamira tendem a se agravar, enormemente, se Belo Monte for construída. Antes mesmo de sua implantação, os sinais dos impactos negativos são visíveis. São vários os boatos que correm nas ruas, mas nem sempre se confirmam. No dia 27/09, por exemplo, dizem que 1000 homens chegaram à cidade, todos atraídos pela promessa de emprego. Correu em boca miúda que um sujeito teria andado a região avaliando os melhores pontos para se implantarem os bordéis.
Os sinais se fazem visíveis, também, na orla. Os bares, antes rústicos, agora vão ganhando uma nova performance, sem perder seu ar de simplicidade, ao menos por enquanto. Cadeiras e mesas se estendem às dezenas em áreas espaçosas. Os carros estacionados com placas de cidades variadas, o perfil das pessoas sentadas às mesas, e o seu sotaque, desvelam esse novo momento. Altamira não é mais a mesma! A cidade vem sendo invadida por pessoas de diversas partes do Brasil, cada qual com seus interesses e motivações. Eu e um colega de Minas Gerais nos incluímos entre esses.
O comércio, no geral, está movimentado! Um exemplo típico são as lojas de celulares, ramo dominado pelas empresas TIM e VIVO. Num espaço relativamente pequeno, da VIVO, contei dez funcionários, todos ocupados no atendimento aos muitos clientes; a maioria, como eu, buscava ali uma forma eficaz e econômica de comunicação com seus estados de origem. Uma equação difícil, senão impossível! Os planos atraentes, que os funcionários trazem na ponta da língua, nem sempre funcionam.
Do ponto de vista econômico, Altamira começa a experimentar um momento de economia aquecida, para alegria dos empresários em geral. Do ponto de vista sociológico, Altamira está, literalmente, inchando. Em pouco tempo o número de habitantes quase dobrou, saltando para 105 mil habitantes.
Em recente Audiência Pública na cidade, debateram-se os impactos e ameaças do projeto de barragem de Belo Monte. Empresários, com sua visão capitalista, políticos, e parte do povo, que hoje vive na miséria, vêem em Belo Monte um sinal de redenção. O Governo Federal, seduzido e influenciado pelo deus-capital, se aproveita dessa situação, e faz promessas de políticas públicas em troca de Belo Monte. Muitos, porém, questionam e resistem. Um cidadão falou do pós-barragem, como uma ressaca depois da tsunami no mar bravio. O representante do consórcio respondeu, na maior cara de pau, que o momento não seria para isso: ‘ocupemo-nos agora dos empregos gerados, não com o que será daqui a 10 anos’.
Ele procurou dissimular-se, pois sabe muito bem que o efeito ressaca, mais que o aquecimento repentino, é desastroso. Já existem, hoje, várias cidades fantasmas no entorno de barragens as quais, depois de um período ‘aquecido’, caem no completo esquecimento. O que ele fez pode chamar-se de pragmatismo de má fé.
É comum governos e empresas se servirem desse artifício para desviar a atenção do povo. Lula fizera algo semelhante em sua visita a Altamira no 2º semestre de 2010. Acossado por pessoas contrárias a Belo Monte, disse que, ao invés de se posicionarem contra, deveriam pensar formas de uso dos 4 bilhões de reais reservados para a região. Não se sabe, até hoje, se a promessa é real.
Há gente se mexendo feito pigmeu contra gigante, ciente de que todo gigante, por grande que seja, tem os pés de barro. Todo império tem sua fragilidade! Há uma luta histórica da Prelazia do Xingu na defesa dos ribeirinhos e dos povos da Amazônia. Existe o Xingu Vivo, que vem denunciando amiúde esse Belo Monstro e fazendo uma grande articulação, dentro e fora do Brasil. Existem, ainda, movimentos populares incipientes, entre eles o MTD – Movimento dos Trabalhadores Desempregados e o MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens. Há reações espontâneas em áreas ameaçadas pelo projeto Belo Monte, na região urbana de Altamira, com ocupações, duramente reprimidas pela força bruta.
A intervenção do Ministério Público Federal anunciada no dia 28/09 e sua proibição de intervenção das obras de Belo Monte no leito do rio Xingu soou em nosso meio como piada de mau gosto. É que, no momento, não existe nem está planejada nenhuma intervenção direta no rio, pois a prioridade da empresa até dezembro é a infra-estrutura de acesso à região da barragem. O trecho da transamazônica perto da volta do Xingu está sendo asfaltado e os travessões melhorados com essa finalidade, e essas obras continuam a pleno vapor.
Quanto aos peixes ornamentais, principal objeto da suposta paralisação das obras, faz-se necessário um esclarecimento. Não se trata de alguns peixinhos de aquário; trata-se de uma variedade imensa de peixes ornamentais endêmica da Volta Grande do Xingu, a qual se estende por um trecho de mais de 100 km, que será extinta, caso a barragem seja construída. Há ainda outros peixes, animais e plantas que, também endêmicos, teriam o mesmo fim.
O impacto sobre o rio e seu entorno significa o impacto sobre o ser humano. O exemplo são, de novo, os peixes ornamentais. Os pescadores conseguiram junto ao IBAMA uma licença para sua exploração sustentável, inclusive para exportação. Extingui-los é, portanto, tirar o ganha-pão desses trabalhadores. É muito contraditório que o IBAMA, tendo concedido licença aos pescadores, agora conceda uma licença a favor de Belo Monte, pois as duas atividades são conflitantes entre si.
Essa ‘aparente’ contradição do IBAMA tem uma explicação. Belo Monte não é uma decisão dos órgãos ambientais nem do governo, mas do Capital, ao qual o governo é subserviente. Essa clareza é importante! Os que se arvoram a levar adiante esse crime anunciado o fazem de forma consciente, para acumulação de capital. Buscar convencê-los do contrário é o mesmo que dizer ao gambá para não mexer na ninhada de ovos, sem expulsá-lo com uma boa sova. Contra a força destruidora do capital somente a força soberana do povo organizado.
Esse é o principal senão o único desafio de todas as entidades e pessoas que desejam, honestamente, defender os bens naturais e os povos da Amazônia: a organização! O acúmulo histórico de alguns segmentos e entidades e sua unidade, o encantamento do povo e a articulação com os parceiros, dentro e fora do Brasil, são elementos decisivos nessa dura, mas importante empreitada.
Enquanto esquenta o debate da barragem de Belo Monte no Brasil e no mundo, com visita de representação indígena a países da Europa, pega fogo, literalmente, numa região rural de Altamira. Seiscentas cabeças de gado foram retiradas em tempo, mas boa parte da área com mais de 15 mil pés de laranja foi destruída. O fogo lambeu 400 ha de terra!
Logo no início do incêndio, ainda pela manhã, a Prefeitura e o Corpo de Bombeiros foram acionados, porém só chegaram depois de quatro horas. E não conseguiram acessar o local pelas más condições das estradas.
Os agricultores, que vinham buscando conter o fogo com seus próprios meios, mas sem sucesso, entraram em desespero e xingaram muito; a polícia foi acionada, um trabalhador quase foi preso. E o fogo, que se iniciara de manhã, varou a tarde e entrou pela noite, apagando depois por sua conta e risco.
*Padre e militante do MAB em missão na Amazônia.
Contra a força destruidora do capital somente a força soberana do povo organizado
Antônio Claret Fernandes*
O mineiro carrega consigo a nostalgia das montanhas, mesclada de saudade, por antecipação, um pouco de desconfiança e certa ironia. É Assim, pois, que chego a Altamira, essa cidade banhada pelo imponente Xingu, ameaçado pela prepotência do Capital.
Outrora aprendi que homem não chora. Não é que chorei nesses poucos dias, mas a saudade é grande! Nomes de pessoas, antes comuns e corriqueiros, agora me invadem a mente e se apresentam como memoráveis. Muito particularmente, o soluço e os olhos lacrimejados de minha mãe, ela que é tão forte, não me sai da memória. Sua voz, cheia de fé, ainda soa em meus ouvidos: ‘Nossa Senhora acompanhe você!’.
Embora não seja muito dado à inovação tecnológica, procurei sondar pessoas do ramo e, com toda a falta de jeito - pela índole matuta e camponesa -, percorri algumas lojas de celulares em Altamira e, por fim, cadastrei-me num plano da Vivo pelo qual se pode falar um minuto para qualquer parte do Brasil por cinco centavos.
Passei o número imediatamente para algumas pessoas amigas e, via e-mail, mandei um recado: ‘se precisar ligar, esse é o telefone!’. E coloquei o número! Confesso que poucos minutos depois, e por diversas vezes seguidas, sempre que me lembrava do celular, abandonado sobre a cama, ia ao quarto e olhava se não havia alguma chamada. Na verdade, estava louco que alguém ligasse!
Cansado de aguardar, coloquei o celular no bolso e, entretido com outras coisas, acabei até me esquecendo dele. E ele tocou! Sua vibração no bolso me deu um susto e, após um riso sem graça diante de um colega que percebera a reação, invadiu-me uma alegria imensa, pois, enfim, pensei, alguém está ligando. Olhei o número: desconhecido. À alegria seguiu-se um desapontamento diante da pergunta, do outro lado: ‘é a Celina’? E depois: ‘desculpe, foi um engano!’.
Tocado tão fortemente por aquele sentimento, me dei conta de que, aos 47 anos, nunca ficara mais que quatro meses seguidos fora de casa. Logo eu, que me achava bastante desprendido, quase sem parada certa, agora passando por essa ‘bobagem’; logo eu que viajara por diversos estados do Brasil, e por alguns outros países, agora me achava ali, doído de saudade. É que entre uma andada e outra se interpunha uma passada em casa, breve que fosse. O que agora eu sentia era, na verdade, uma espécie de saudade por antecipação: ainda que não se tivesse completado uma semana de nossa estada em Altamira, a previsão era para três anos, e isso me tirava do sério, e desconsertava.
Continuo convicto de que ‘nossa pátria é o mundo’, mas todo mundo precisa de um ninho; não para apegar-se, mas para ser-lhe referência, feito terra firme sobre os pés. E o novo ‘ninho’ está, ainda, em construção. Será no seio do povo, nosso aconchego e proteção.
Sentir a distância das pessoas queridas me despertou, de repente, o sentido da solidariedade, e resolvi passar uma mensagem para Dayana, bem longe e sem ir à sua casa há mais de dois anos. Ela faz medicina em Cuba pelo MAB num curso com duração de sete anos. Mas não deu certo! O endereço dela no computador devia ser antigo e a mensagem voltou.
Entre os nomes grudados na memória, alguns, às vésperas de nossa partida de MG, expressavam uma especial preocupação com a nossa segurança. E diziam: ‘cuidado com os índios’! Eu ria sem dizer nada. E agora rio sozinho, cada vez mais convicto de que, se há que se ter cuidado, é com os inimigos dos índios: barrageiros, madeireiros e muitas autoridades, prostrados de joelho frente à força do Capital. Esses são perigosos!
Altamira é uma cidade de contradições! O Xingu, banhando-a, oferece-lhe, gratuitamente, uma vista singular e, aos moradores e visitantes, uma orla aconchegante. Ali é o local do encontro, da convivência e descanso, em especial nos finais de tarde e à noite. Os namorados se encontram, encostados nos muros. As pessoas caminham, correm, e alguns fazem exercícios, espichando a perna sobre um banco e apertando o joelho. A brisa do rio contrasta com o mormaço e o sol escaldante.
Tirado esse cartão postal, que é bem cuidado, Altamira, semelhante às outras cidades da região, carece de políticas públicas elementares. O esgoto corre a céu aberto nos cantos das ruas. Parece não haver serviço de limpeza urbana. Em diferentes pontos, urubus disputam as sacolas de lixo, buscando alimento.
A periferia é pior! As áreas alagadiças, particularmente, onde residem muitas centenas de famílias, a situação é deprimente. Os esgotos, o lixo e, no período das cheias, a água parada sob as palafitas propiciam a incidência de diferentes vetores de inúmeras doenças graves. Essa população mais simples, por vezes em miséria, é a mais sofredora. Mas não perde seu encanto pela vida, manifestado no espírito da boa acolhida.
O mormaço de Altamira, como se fosse uma estufa, impõe uma especial característica às lojas: boa parte delas, particularmente as mais equipadas, dispõe de ar condicionado, por vezes de porta fechada com a inscrição: ‘empurre’! Andando pela rua, sob um sol de rachar, entrei diversas vezes numa ou noutra loja; não para comprar, que não sou desse feitio, mas para me refrescar um pouco naquele ambiente.
As contradições de Altamira tendem a se agravar, enormemente, se Belo Monte for construída. Antes mesmo de sua implantação, os sinais dos impactos negativos são visíveis. São vários os boatos que correm nas ruas, mas nem sempre se confirmam. No dia 27/09, por exemplo, dizem que 1000 homens chegaram à cidade, todos atraídos pela promessa de emprego. Correu em boca miúda que um sujeito teria andado a região avaliando os melhores pontos para se implantarem os bordéis.
Os sinais se fazem visíveis, também, na orla. Os bares, antes rústicos, agora vão ganhando uma nova performance, sem perder seu ar de simplicidade, ao menos por enquanto. Cadeiras e mesas se estendem às dezenas em áreas espaçosas. Os carros estacionados com placas de cidades variadas, o perfil das pessoas sentadas às mesas, e o seu sotaque, desvelam esse novo momento. Altamira não é mais a mesma! A cidade vem sendo invadida por pessoas de diversas partes do Brasil, cada qual com seus interesses e motivações. Eu e um colega de Minas Gerais nos incluímos entre esses.
O comércio, no geral, está movimentado! Um exemplo típico são as lojas de celulares, ramo dominado pelas empresas TIM e VIVO. Num espaço relativamente pequeno, da VIVO, contei dez funcionários, todos ocupados no atendimento aos muitos clientes; a maioria, como eu, buscava ali uma forma eficaz e econômica de comunicação com seus estados de origem. Uma equação difícil, senão impossível! Os planos atraentes, que os funcionários trazem na ponta da língua, nem sempre funcionam.
Do ponto de vista econômico, Altamira começa a experimentar um momento de economia aquecida, para alegria dos empresários em geral. Do ponto de vista sociológico, Altamira está, literalmente, inchando. Em pouco tempo o número de habitantes quase dobrou, saltando para 105 mil habitantes.
Em recente Audiência Pública na cidade, debateram-se os impactos e ameaças do projeto de barragem de Belo Monte. Empresários, com sua visão capitalista, políticos, e parte do povo, que hoje vive na miséria, vêem em Belo Monte um sinal de redenção. O Governo Federal, seduzido e influenciado pelo deus-capital, se aproveita dessa situação, e faz promessas de políticas públicas em troca de Belo Monte. Muitos, porém, questionam e resistem. Um cidadão falou do pós-barragem, como uma ressaca depois da tsunami no mar bravio. O representante do consórcio respondeu, na maior cara de pau, que o momento não seria para isso: ‘ocupemo-nos agora dos empregos gerados, não com o que será daqui a 10 anos’.
Ele procurou dissimular-se, pois sabe muito bem que o efeito ressaca, mais que o aquecimento repentino, é desastroso. Já existem, hoje, várias cidades fantasmas no entorno de barragens as quais, depois de um período ‘aquecido’, caem no completo esquecimento. O que ele fez pode chamar-se de pragmatismo de má fé.
É comum governos e empresas se servirem desse artifício para desviar a atenção do povo. Lula fizera algo semelhante em sua visita a Altamira no 2º semestre de 2010. Acossado por pessoas contrárias a Belo Monte, disse que, ao invés de se posicionarem contra, deveriam pensar formas de uso dos 4 bilhões de reais reservados para a região. Não se sabe, até hoje, se a promessa é real.
Há gente se mexendo feito pigmeu contra gigante, ciente de que todo gigante, por grande que seja, tem os pés de barro. Todo império tem sua fragilidade! Há uma luta histórica da Prelazia do Xingu na defesa dos ribeirinhos e dos povos da Amazônia. Existe o Xingu Vivo, que vem denunciando amiúde esse Belo Monstro e fazendo uma grande articulação, dentro e fora do Brasil. Existem, ainda, movimentos populares incipientes, entre eles o MTD – Movimento dos Trabalhadores Desempregados e o MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens. Há reações espontâneas em áreas ameaçadas pelo projeto Belo Monte, na região urbana de Altamira, com ocupações, duramente reprimidas pela força bruta.
A intervenção do Ministério Público Federal anunciada no dia 28/09 e sua proibição de intervenção das obras de Belo Monte no leito do rio Xingu soou em nosso meio como piada de mau gosto. É que, no momento, não existe nem está planejada nenhuma intervenção direta no rio, pois a prioridade da empresa até dezembro é a infra-estrutura de acesso à região da barragem. O trecho da transamazônica perto da volta do Xingu está sendo asfaltado e os travessões melhorados com essa finalidade, e essas obras continuam a pleno vapor.
Quanto aos peixes ornamentais, principal objeto da suposta paralisação das obras, faz-se necessário um esclarecimento. Não se trata de alguns peixinhos de aquário; trata-se de uma variedade imensa de peixes ornamentais endêmica da Volta Grande do Xingu, a qual se estende por um trecho de mais de 100 km, que será extinta, caso a barragem seja construída. Há ainda outros peixes, animais e plantas que, também endêmicos, teriam o mesmo fim.
O impacto sobre o rio e seu entorno significa o impacto sobre o ser humano. O exemplo são, de novo, os peixes ornamentais. Os pescadores conseguiram junto ao IBAMA uma licença para sua exploração sustentável, inclusive para exportação. Extingui-los é, portanto, tirar o ganha-pão desses trabalhadores. É muito contraditório que o IBAMA, tendo concedido licença aos pescadores, agora conceda uma licença a favor de Belo Monte, pois as duas atividades são conflitantes entre si.
Essa ‘aparente’ contradição do IBAMA tem uma explicação. Belo Monte não é uma decisão dos órgãos ambientais nem do governo, mas do Capital, ao qual o governo é subserviente. Essa clareza é importante! Os que se arvoram a levar adiante esse crime anunciado o fazem de forma consciente, para acumulação de capital. Buscar convencê-los do contrário é o mesmo que dizer ao gambá para não mexer na ninhada de ovos, sem expulsá-lo com uma boa sova. Contra a força destruidora do capital somente a força soberana do povo organizado.
Esse é o principal senão o único desafio de todas as entidades e pessoas que desejam, honestamente, defender os bens naturais e os povos da Amazônia: a organização! O acúmulo histórico de alguns segmentos e entidades e sua unidade, o encantamento do povo e a articulação com os parceiros, dentro e fora do Brasil, são elementos decisivos nessa dura, mas importante empreitada.
Enquanto esquenta o debate da barragem de Belo Monte no Brasil e no mundo, com visita de representação indígena a países da Europa, pega fogo, literalmente, numa região rural de Altamira. Seiscentas cabeças de gado foram retiradas em tempo, mas boa parte da área com mais de 15 mil pés de laranja foi destruída. O fogo lambeu 400 ha de terra!
Logo no início do incêndio, ainda pela manhã, a Prefeitura e o Corpo de Bombeiros foram acionados, porém só chegaram depois de quatro horas. E não conseguiram acessar o local pelas más condições das estradas.
Os agricultores, que vinham buscando conter o fogo com seus próprios meios, mas sem sucesso, entraram em desespero e xingaram muito; a polícia foi acionada, um trabalhador quase foi preso. E o fogo, que se iniciara de manhã, varou a tarde e entrou pela noite, apagando depois por sua conta e risco.
*Padre e militante do MAB em missão na Amazônia.
domingo, 2 de outubro de 2011
Quebrando mitos - nós brasileiros trabalhamos muito.
Pochmann: Pobres que trabalham e estudam têm jornada maior que operários do século XIX
por Fernando César Oliveira, site da UFPR, O economista Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), classificou ontem à noite em Curitiba como “heróis” os brasileiros de famílias pobres capazes de conciliar o trabalho com o estudo.
“No Brasil, dificilmente um filho de rico começa a trabalhar antes de terminar a graduação ou, em alguns casos, até mesmo a pós-graduação”, observou Pochmann.
“Os brasileiros pobres que estudam e trabalham são verdadeiros heróis. Submetem-se a uma jornada de até 16 horas diárias, oito de trabalho, quatro de estudo e outras quatro de deslocamento. Isso é mais do que os operários no século XIX.”
O presidente do Ipea foi um dos palestrantes na abertura da terceira edição do Seminário Sociologia & Política, ao lado da professora Celi Scalon (UFRJ), no Teatro da Reitoria da UFPR. “Repensando Desigualdades em Novos Contextos” é o tema geral do seminário. Promovido pelos programas de pós-graduação em Sociologia e em Ciência Política da instituição, o evento termina nesta quarta-feira (28).
Pochmann lembrou que o Brasil levou cem anos, desde a proclamação da República, em 1889, para universalizar o acesso das crianças e adolescentes ao ensino fundamental. “Mas esse acesso foi condicionado ao não crescimento dos recursos da educação, que permaneceram em torno de 4,1% ou 4,3% do PIB. Sem ampliar os recursos, aumentamos as vagas com a queda da qualidade do ensino.”
Essa universalização do ensino fundamental, no entanto, não significa que 100% dos brasileiros em idade escolar estejam estudando. Segundo dados apresentados pelo dirigente do Ipea, ainda existem 400 mil brasileiros com até 14 anos fora da escola. Se essa faixa etária for estendida para 16 anos, a cifra salta para 3,8 milhões de pessoas.
“A cada dez brasileiros, um é analfabeto. E ainda temos cerca de 45% analfabetos funcionais. É muito difícil fazer valer a democracia com esse cenário.”
Em sua fala, Marcio Pochmann também abordou temas como a redução da taxa de fecundidade das mulheres brasileiras, o crescimento da população idosa, o monopólio das corporações privadas transnacionais e a concentração da propriedade da terra.
“O Brasil não fez uma reforma agrária, não democratizou o acesso à terra. Temos uma estrutura fundiária mais concentrada do que em 1920, com o agravante de que parte dela está nas mãos de estrangeiros”, afirmou o economista. “De um lado, 40 mil proprietários rurais são donos de 50% da terra agriculturável do país, e elegem de 100 a 120 deputados federais. De outro, 14 milhões trabalhadores rurais, os agricultores familiares, elegem apenas de seis a dez deputados.”
Para Marcio Pochmann, a desigualdade é um produto do subdesenvolvimento. “Não que os países desenvolvidos não tenham desigualdade, mas não de forma tão escandalosa.”
Nem revolucionário, nem reformista
Segundo o presidente do Ipea, a participação dos 10% mais ricos no estoque da riqueza brasileira não mudou nos últimos três séculos. Permanece estacionada na faixa percentual em torno de 70 a 75%.
“Somos um país de cultura autoritária, com 500 anos de história e menos de 50 anos de vivência democrática. O Brasil não é um país reformista e muito menos revolucionário”, sentencia Pochmann. “A baixa tradição de uma cultura partidária capaz de construir convergências nacionais nos subordina a interesses outros que não os da maioria da população.”
Marcio Pochmann afirmou que os ricos não pagam impostos no Brasil. “Quem tem carro, paga IPVA. Quem tem lancha, avião ou helicóptero, não paga nada. E o ITR [Imposto Territorial Rural] é só pra inglês ver”, exemplificou. “Quem paga imposto no Brasil são basicamente os pobres.”
Um estudo do Ipea teria demonstrado que os moradores de favelas pagam proporcionalmente mais IPTU do que os brasileiros que vivem em mansões. “Quem menos paga é quem mais reclama de imposto. Tanto que impostômetro foi feito no centro rico de São Paulo.”
Pochmann observa que o tema das desigualdes não gera manifestações, não gera tensão. “Não há greve em relação às desigualdades.”
Trabalho imaterial
Na avaliação de Márcio Pochmann, a sociedade mundial está cada vez mais assentada no que ele chama de “trabalho imaterial”, associado a novas tecnologias de informação, como aparelhos celulares e microcomputadores. “O trabalhador está cada vez mais levando trabalho pra casa.”
Essa sociedade do trabalho imaterial, conforme o dirigente do Ipea, pressupõe uma sociedade que tenha como principal ativo o conhecimento. “Pressupõe o estudo durante a vida toda, e o ensino superior apenas como piso.”
Pochmann criticou ainda a forma como a comunidade acadêmica tem tratado o tema das desigualdades no país. “O tema tem sido apresentado de forma muito descritiva e pouco de enfrentamento real e efetivo. Em que medida a discussão está ligada a intervenções efetivas, a políticas que possam de fato alterar a realidade como a conhecemos?”
Na avaliação dele, a fragmentação e a especialização das ciências sociais aprofundariam o quadro de alienação sobre o problema das desigualdades.
“As pesquisas não mudam a realidade. Quem muda a realidade é o homem. Agora, as pesquisas, as teorias mudam o homem. Se mudarem o homem, ele muda a realidade. Nada nos impede de fazer isso, a não ser o medo, o medo de ousar.”
por Fernando César Oliveira, site da UFPR, O economista Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), classificou ontem à noite em Curitiba como “heróis” os brasileiros de famílias pobres capazes de conciliar o trabalho com o estudo.
“No Brasil, dificilmente um filho de rico começa a trabalhar antes de terminar a graduação ou, em alguns casos, até mesmo a pós-graduação”, observou Pochmann.
“Os brasileiros pobres que estudam e trabalham são verdadeiros heróis. Submetem-se a uma jornada de até 16 horas diárias, oito de trabalho, quatro de estudo e outras quatro de deslocamento. Isso é mais do que os operários no século XIX.”
O presidente do Ipea foi um dos palestrantes na abertura da terceira edição do Seminário Sociologia & Política, ao lado da professora Celi Scalon (UFRJ), no Teatro da Reitoria da UFPR. “Repensando Desigualdades em Novos Contextos” é o tema geral do seminário. Promovido pelos programas de pós-graduação em Sociologia e em Ciência Política da instituição, o evento termina nesta quarta-feira (28).
Pochmann lembrou que o Brasil levou cem anos, desde a proclamação da República, em 1889, para universalizar o acesso das crianças e adolescentes ao ensino fundamental. “Mas esse acesso foi condicionado ao não crescimento dos recursos da educação, que permaneceram em torno de 4,1% ou 4,3% do PIB. Sem ampliar os recursos, aumentamos as vagas com a queda da qualidade do ensino.”
Essa universalização do ensino fundamental, no entanto, não significa que 100% dos brasileiros em idade escolar estejam estudando. Segundo dados apresentados pelo dirigente do Ipea, ainda existem 400 mil brasileiros com até 14 anos fora da escola. Se essa faixa etária for estendida para 16 anos, a cifra salta para 3,8 milhões de pessoas.
“A cada dez brasileiros, um é analfabeto. E ainda temos cerca de 45% analfabetos funcionais. É muito difícil fazer valer a democracia com esse cenário.”
Em sua fala, Marcio Pochmann também abordou temas como a redução da taxa de fecundidade das mulheres brasileiras, o crescimento da população idosa, o monopólio das corporações privadas transnacionais e a concentração da propriedade da terra.
“O Brasil não fez uma reforma agrária, não democratizou o acesso à terra. Temos uma estrutura fundiária mais concentrada do que em 1920, com o agravante de que parte dela está nas mãos de estrangeiros”, afirmou o economista. “De um lado, 40 mil proprietários rurais são donos de 50% da terra agriculturável do país, e elegem de 100 a 120 deputados federais. De outro, 14 milhões trabalhadores rurais, os agricultores familiares, elegem apenas de seis a dez deputados.”
Para Marcio Pochmann, a desigualdade é um produto do subdesenvolvimento. “Não que os países desenvolvidos não tenham desigualdade, mas não de forma tão escandalosa.”
Nem revolucionário, nem reformista
Segundo o presidente do Ipea, a participação dos 10% mais ricos no estoque da riqueza brasileira não mudou nos últimos três séculos. Permanece estacionada na faixa percentual em torno de 70 a 75%.
“Somos um país de cultura autoritária, com 500 anos de história e menos de 50 anos de vivência democrática. O Brasil não é um país reformista e muito menos revolucionário”, sentencia Pochmann. “A baixa tradição de uma cultura partidária capaz de construir convergências nacionais nos subordina a interesses outros que não os da maioria da população.”
Marcio Pochmann afirmou que os ricos não pagam impostos no Brasil. “Quem tem carro, paga IPVA. Quem tem lancha, avião ou helicóptero, não paga nada. E o ITR [Imposto Territorial Rural] é só pra inglês ver”, exemplificou. “Quem paga imposto no Brasil são basicamente os pobres.”
Um estudo do Ipea teria demonstrado que os moradores de favelas pagam proporcionalmente mais IPTU do que os brasileiros que vivem em mansões. “Quem menos paga é quem mais reclama de imposto. Tanto que impostômetro foi feito no centro rico de São Paulo.”
Pochmann observa que o tema das desigualdes não gera manifestações, não gera tensão. “Não há greve em relação às desigualdades.”
Trabalho imaterial
Na avaliação de Márcio Pochmann, a sociedade mundial está cada vez mais assentada no que ele chama de “trabalho imaterial”, associado a novas tecnologias de informação, como aparelhos celulares e microcomputadores. “O trabalhador está cada vez mais levando trabalho pra casa.”
Essa sociedade do trabalho imaterial, conforme o dirigente do Ipea, pressupõe uma sociedade que tenha como principal ativo o conhecimento. “Pressupõe o estudo durante a vida toda, e o ensino superior apenas como piso.”
Pochmann criticou ainda a forma como a comunidade acadêmica tem tratado o tema das desigualdades no país. “O tema tem sido apresentado de forma muito descritiva e pouco de enfrentamento real e efetivo. Em que medida a discussão está ligada a intervenções efetivas, a políticas que possam de fato alterar a realidade como a conhecemos?”
Na avaliação dele, a fragmentação e a especialização das ciências sociais aprofundariam o quadro de alienação sobre o problema das desigualdades.
“As pesquisas não mudam a realidade. Quem muda a realidade é o homem. Agora, as pesquisas, as teorias mudam o homem. Se mudarem o homem, ele muda a realidade. Nada nos impede de fazer isso, a não ser o medo, o medo de ousar.”
quarta-feira, 21 de setembro de 2011
DANDARA - Proteção de Histórica Crença
Dandara
Miguel Lanzellotti Baldez
Conheci Dandara e enriqueci minha vida no pouco tempo de convívio com aquela gente que se constrói como se estivesse criando um novo mundo. Foi a minha primeira reflexão, ao me deparar logo à entrada da comunidade com o mapa, ou planta da área mostrando em seu traçado a presença técnica de arquiteto ou engenheiro, em suma alguém que compreendera o sentido da cultura e da solidariedade e percebera que o seu conhecimento era fruto da expropriação histórica da classe trabalhadora destinada a abastecer, desde a revolução burguesa, os fundos do capital, e o devolvera em Dandara.
Importante assinalar, no campo das minhas reflexões, a divisão dos homens na chamada modernidade entre o homem inspirado no modelo da burguesia, titular absoluto de todos os direitos, e consagrado nas leis civis do ocidente, e o homem cuja subjetividade, seu reconhecimento como pessoa, fora limitado à necessidade de levar ao mercado a única mercadoria que lhe deixaram, sua força de trabalho. Pois este homem, em luta permanente pela vida em permanentes confrontos nas fábricas, conquistando duramente seus escassos e limitados direitos, banido e degradado pelo capital, só vai reencontrar-se consigo mesmo quando, escapando do encapsulamento jurídico em que o meteram e individualizaram, se descobre no outro... e no outro... E vai assim, de companheiro a companheiro, identificando-se em cada um dos seus iguais até despontar no coletivo.
Este o homem e esta a mulher que encontrei em Dandara, proteção de histórica crença e nome da avenida central da nova vila. Mas não só vila. Cidade, estado, um dos muitos anúncios ou promessas felizmente espalhados Brasil afora, e prova de que uma outra sociedade é possível. Que nasça da solidariedade e que, por isso, certamente construirá uma nova igualdade. Concreta, econômica e social, e não apenas uma igualdade perante a lei, que, embora impositiva, é só uma abstração...
Em Dandara também encontrei uma outra igreja. Atuante, de mangas arregaçadas e inspirada no caráter democrático do Concilio Vaticano II e na Teologia da Libertação, sempre do lado dos moradores e mostrando que a construção da própria vida, abrindo ruas e levantando as casas da coletividade, pode ser a reza que leva a Deus. A religião deixando de ser, como disse Marx, “o suspiro da criatura oprimida” para tranformar-se na alma da nova criatura, como entre outros, essa brava gente de Dandara, forte mas ainda ameaçada em suas necessidades fundamentais.
E quais são essas necessidade fundamentais? Sem dúvida, alimentar-se e morar.
A inspiração em Dandara é profícua, principalmente quando o grande inimigo vem de fora. Como em Palmares, aquela federação de quilombos, onde a altivez do negro construiu um forte estado de resistência à violência do branco, hoje, aqui, os moradores deste renovado quilombo, hão de convocar e reunir para a resistência os resíduos democráticos construídos no tempo histórico deste Brasil ainda sofridamente Pindorama, mas dando sinais de uma vida transformada, como diz o poeta, “em festa trabalho e pão”.
Está aí, como exemplo maior, o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, importante sujeito coletivo cuja luta efetiva o torna parceiro e companheiro de Dandara, e outros tantos movimentos libertários emergentes dentro ou fora do Brasil. Estão aí, na luta pela terra, como o MNLP e o Conselho Popular no Rio, estão aí importantes setores universitários onde alguns professores, não muitos é verdade, já sentiram nos enfrentamentos de classe a emergência de um novo direito, concreto e emancipatório das camadas subalternas da sociedade.
Resta uma pequena mas definitiva observação em torno do direito burguês, esse direito de acolhida e consolidação no Brasil pela classe que, entre nós, detem o poder graças ao mecanismo da representação. Assim, o trabalhador trabalha, o capitalista lucra e amplia o seu capital e os políticos, através do Estado, administram os interesses do capital, mantendo o trabalhador, através do controle salarial, submisso ao capitalista.
Vale pensarmos juntos na alimentação e na moradia, são duas necessidades de vida, necessidades éticas. Pois o direito, ao apropriar-se delas, transforma-as em mercadorias. Sob o controle deste direito, a satisfação tanto de uma quanto de outra destas necessidades essenciais exige um pagamento, o preço imposto pelo capital.
O meu voto aos companheiros de Dandara: resistam companheiros, organizando-se politicamente, resistam para manter a terra que ocupam e onde construíram em democrático projeto de cidade, solidária e igualitária.
Miguel Lanzellotti Baldez
Conheci Dandara e enriqueci minha vida no pouco tempo de convívio com aquela gente que se constrói como se estivesse criando um novo mundo. Foi a minha primeira reflexão, ao me deparar logo à entrada da comunidade com o mapa, ou planta da área mostrando em seu traçado a presença técnica de arquiteto ou engenheiro, em suma alguém que compreendera o sentido da cultura e da solidariedade e percebera que o seu conhecimento era fruto da expropriação histórica da classe trabalhadora destinada a abastecer, desde a revolução burguesa, os fundos do capital, e o devolvera em Dandara.
Importante assinalar, no campo das minhas reflexões, a divisão dos homens na chamada modernidade entre o homem inspirado no modelo da burguesia, titular absoluto de todos os direitos, e consagrado nas leis civis do ocidente, e o homem cuja subjetividade, seu reconhecimento como pessoa, fora limitado à necessidade de levar ao mercado a única mercadoria que lhe deixaram, sua força de trabalho. Pois este homem, em luta permanente pela vida em permanentes confrontos nas fábricas, conquistando duramente seus escassos e limitados direitos, banido e degradado pelo capital, só vai reencontrar-se consigo mesmo quando, escapando do encapsulamento jurídico em que o meteram e individualizaram, se descobre no outro... e no outro... E vai assim, de companheiro a companheiro, identificando-se em cada um dos seus iguais até despontar no coletivo.
Este o homem e esta a mulher que encontrei em Dandara, proteção de histórica crença e nome da avenida central da nova vila. Mas não só vila. Cidade, estado, um dos muitos anúncios ou promessas felizmente espalhados Brasil afora, e prova de que uma outra sociedade é possível. Que nasça da solidariedade e que, por isso, certamente construirá uma nova igualdade. Concreta, econômica e social, e não apenas uma igualdade perante a lei, que, embora impositiva, é só uma abstração...
Em Dandara também encontrei uma outra igreja. Atuante, de mangas arregaçadas e inspirada no caráter democrático do Concilio Vaticano II e na Teologia da Libertação, sempre do lado dos moradores e mostrando que a construção da própria vida, abrindo ruas e levantando as casas da coletividade, pode ser a reza que leva a Deus. A religião deixando de ser, como disse Marx, “o suspiro da criatura oprimida” para tranformar-se na alma da nova criatura, como entre outros, essa brava gente de Dandara, forte mas ainda ameaçada em suas necessidades fundamentais.
E quais são essas necessidade fundamentais? Sem dúvida, alimentar-se e morar.
A inspiração em Dandara é profícua, principalmente quando o grande inimigo vem de fora. Como em Palmares, aquela federação de quilombos, onde a altivez do negro construiu um forte estado de resistência à violência do branco, hoje, aqui, os moradores deste renovado quilombo, hão de convocar e reunir para a resistência os resíduos democráticos construídos no tempo histórico deste Brasil ainda sofridamente Pindorama, mas dando sinais de uma vida transformada, como diz o poeta, “em festa trabalho e pão”.
Está aí, como exemplo maior, o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, importante sujeito coletivo cuja luta efetiva o torna parceiro e companheiro de Dandara, e outros tantos movimentos libertários emergentes dentro ou fora do Brasil. Estão aí, na luta pela terra, como o MNLP e o Conselho Popular no Rio, estão aí importantes setores universitários onde alguns professores, não muitos é verdade, já sentiram nos enfrentamentos de classe a emergência de um novo direito, concreto e emancipatório das camadas subalternas da sociedade.
Resta uma pequena mas definitiva observação em torno do direito burguês, esse direito de acolhida e consolidação no Brasil pela classe que, entre nós, detem o poder graças ao mecanismo da representação. Assim, o trabalhador trabalha, o capitalista lucra e amplia o seu capital e os políticos, através do Estado, administram os interesses do capital, mantendo o trabalhador, através do controle salarial, submisso ao capitalista.
Vale pensarmos juntos na alimentação e na moradia, são duas necessidades de vida, necessidades éticas. Pois o direito, ao apropriar-se delas, transforma-as em mercadorias. Sob o controle deste direito, a satisfação tanto de uma quanto de outra destas necessidades essenciais exige um pagamento, o preço imposto pelo capital.
O meu voto aos companheiros de Dandara: resistam companheiros, organizando-se politicamente, resistam para manter a terra que ocupam e onde construíram em democrático projeto de cidade, solidária e igualitária.
quarta-feira, 14 de setembro de 2011
O Direito Fundamental à Alimentação
O direito fundamental à alimentação foi expressamente incluído no texto constitucional como direito social, art. 6°, em fevereiro de 2010, com a edição da EC/ 64. Contudo, esse direito já tinha o caráter de norma supralegal em vista do art. 11, item 2, do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, integrado à ordem interna por meio do Decreto n° 591/92 e em vista do art. 12 do Protocolo de São Salvador, Decreto nº 3.321/99. Entendemos, todavia, que a previsão constitucional expressa do direito à alimentação acrescenta nos aspectos educativos e conscientizador em vista de a nossa cultura jurídica ter se pautado por certo desprezo ao Direito Internacional.
Relevante destacar que em 2006 já havia sido promulgada a Lei 11.346 que criou o SISAN - Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Essa Lei, em 13 artigos, definiu a composição do SISAN por meio de um conjunto de órgãos e entes da federação e de instituições privadas afetas à segurança alimentar e nutricional e que demonstrem interesse em integrar esse colegiado nos termos da legislação aplicável.
Por meio dessa lei estabeleceu o legislador as definições, os princípios, as diretrizes e os objetivos para a implementação da política que tem em vista assegurar o direito humano à alimentação adequada, conceito esse tratado no art. 2° que considerou adequada a alimentação que atende aos requisitos da dignidade da pessoa humana, ou seja, aquela indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal. Por isso, deve o poder público adotar as políticas e as ações necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.
No momento em que descobrimos ser o Brasil o maior consumidor mundial de agrotóxicos e dos abusos no cultivo de alimentos geneticamente modificados sem a prévia autorização estatal é bom para a nossa saúde conhecer o que diz a Lei 11.346/06, fortalecida agora pelo que dispõe o Art. 6º da Constituição acerca do direito à alimentação. É preciso também participar. O CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) – é um importante instrumento de articulação entre governo e sociedade civil na proposição de diretrizes para as ações na área da alimentação e nutrição. Instalado no dia 30 de janeiro de 2003, o Conselho tem caráter consultivo e assessora o Presidente da República na formulação de políticas e na definição de orientações para que o país garanta o direito humano à alimentação.
Precisamos compreender que a segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras da saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis, art. 3º. Para isso, a segurança alimentar e nutricional abrange, segundo o art. 4º, a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio da produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da industrialização, da comercialização, incluindo-se os acordos internacionais, do abastecimento e da distribuição dos alimentos, incluindo a água, bem como da geração de emprego e da redistribuição de renda; a conservação da biodiversidade e utilização sustentável dos recursos; a promoção da saúde, da nutrição e da alimentação da população, incluindo-se grupos populacionais específicos e populações em situação de vulnerabilidade social; a garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos, bem como seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida saudáveis que respeitem a diversidade étnica, racial e cultural da população; a produção de conhecimento e o acesso à informação; e a implementação de políticas públicas e estratégias sustentáveis e participativas de produção, comercialização e consumo de alimentos, respeitando- se as múltiplas características culturais do País.
Relevante destacar que em 2006 já havia sido promulgada a Lei 11.346 que criou o SISAN - Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Essa Lei, em 13 artigos, definiu a composição do SISAN por meio de um conjunto de órgãos e entes da federação e de instituições privadas afetas à segurança alimentar e nutricional e que demonstrem interesse em integrar esse colegiado nos termos da legislação aplicável.
Por meio dessa lei estabeleceu o legislador as definições, os princípios, as diretrizes e os objetivos para a implementação da política que tem em vista assegurar o direito humano à alimentação adequada, conceito esse tratado no art. 2° que considerou adequada a alimentação que atende aos requisitos da dignidade da pessoa humana, ou seja, aquela indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal. Por isso, deve o poder público adotar as políticas e as ações necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.
No momento em que descobrimos ser o Brasil o maior consumidor mundial de agrotóxicos e dos abusos no cultivo de alimentos geneticamente modificados sem a prévia autorização estatal é bom para a nossa saúde conhecer o que diz a Lei 11.346/06, fortalecida agora pelo que dispõe o Art. 6º da Constituição acerca do direito à alimentação. É preciso também participar. O CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) – é um importante instrumento de articulação entre governo e sociedade civil na proposição de diretrizes para as ações na área da alimentação e nutrição. Instalado no dia 30 de janeiro de 2003, o Conselho tem caráter consultivo e assessora o Presidente da República na formulação de políticas e na definição de orientações para que o país garanta o direito humano à alimentação.
Precisamos compreender que a segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras da saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis, art. 3º. Para isso, a segurança alimentar e nutricional abrange, segundo o art. 4º, a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio da produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da industrialização, da comercialização, incluindo-se os acordos internacionais, do abastecimento e da distribuição dos alimentos, incluindo a água, bem como da geração de emprego e da redistribuição de renda; a conservação da biodiversidade e utilização sustentável dos recursos; a promoção da saúde, da nutrição e da alimentação da população, incluindo-se grupos populacionais específicos e populações em situação de vulnerabilidade social; a garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos, bem como seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida saudáveis que respeitem a diversidade étnica, racial e cultural da população; a produção de conhecimento e o acesso à informação; e a implementação de políticas públicas e estratégias sustentáveis e participativas de produção, comercialização e consumo de alimentos, respeitando- se as múltiplas características culturais do País.
terça-feira, 16 de agosto de 2011
O Caos da Ordem - prof. Boaventura Sousa Santos
O caos da ordem
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
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Em Londres, estamos perante a denúncia violenta de modelo que tem recursos para resgatar bancos, mas não os tem para uma juventude sem esperança
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Os motins na Inglaterra são um perturbador sinal dos tempos. Está a ser gerado nas sociedades um combustível altamente inflamável que flui nos subterrâneos da vida coletiva sem que se dê conta.
Esse combustível é constituído pela mistura de quatro componentes: a promoção conjunta da desigualdade social e do individualismo, a mercantilização da vida individual e coletiva, a prática do racismo em nome da tolerância, o sequestro da democracia por elites privilegiadas e a consequente transformação da política em administração do roubo "legal" dos cidadãos. Cada um dos componentes tem uma contradição interna.
Quando elas se sobrepõem, qualquer incidente pode provocar uma explosão de proporções inimagináveis. Com o neoliberalismo, o aumento da desigualdade social deixou de ser um problema para passar a ser a solução.
A ostentação dos ricos transformou-se em prova do êxito de um modelo social que só deixa na miséria a maioria dos cidadãos porque estes supostamente não se esforçam o suficiente para terem êxito.
Isso só foi possível com a conversão do individualismo em valor absoluto, o qual, contraditoriamente, só pode ser vivido como utopia da igualdade, da possibilidade de todos dispensarem por igual a solidariedade social, quer como agentes dela, quer como seus beneficiários.
Para o indivíduo assim construído, a desigualdade só é um problema quando lhe é adversa; quando isso sucede, nunca é reconhecida como merecida. Por outro lado, na sociedade de consumo, os objetos de consumo deixam de satisfazer necessidades para as criar incessantemente, e o investimento pessoal neles é tão intenso quando se têm como quando não se têm.
Entre acreditar que o dinheiro medeia tudo e acreditar que tudo pode ser feito para obtê-lo vai um passo muito curto. Os poderosos dão esse passo todos os dias sem que nada lhes aconteça. Os despossuídos, que pensam que podem fazer o mesmo, acabam nas prisões.
Os distúrbios na Inglaterra começaram com uma dimensão racial. São afloramentos da sociabilidade colonial que continua a dominar as nossas sociedades, muito tempo depois de terminar o colonialismo político. Um jovem negro das nossas cidades vive cotidianamente uma suspeição social que existe independentemente do que ele ou ela seja ou faça.
Tal suspeição é tanto mais virulenta quando ocorre numa sociedade distraída pelas políticas oficiais da luta contra a discriminação e pela fachada do multiculturalismo.
O que há de comum entre os distúrbios da Inglaterra e a destruição do bem-estar dos cidadãos provocada pelas políticas de austeridade comandadas por mercados financeiros? São sinais dos limites extremos da ordem democrática.
Os jovens amotinados são criminosos, mas não estamos perante uma "criminalidade pura e simples", como afirmou o primeiro-ministro David Cameron.
Estamos perante uma denúncia política violenta de um modelo social e político que tem recursos para resgatar bancos e não os tem para resgatar a juventude de uma vida sem esperança, do pesadelo de uma educação cada vez mais cara e mais irrelevante, dados o aumento do desemprego e o completo abandono em comunidades que as políticas públicas antissociais transformaram em campos de treino da raiva, da anomia e da revolta.
Entre o poder neoliberal instalado e os amotinados urbanos há uma simetria assustadora. A indiferença social, a arrogância, a distribuição injusta dos sacrifícios estão a semear o caos, a violência e o medo, e os semeadores dirão amanhã, genuinamente ofendidos, que o que semearam nada tem a ver com o caos, a violência e o medo instalados nas ruas das nossas cidades.
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BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, sociólogo português, é diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal). É autor, entre outros livros, de "Para uma Revolução Democrática da Justiça" (Cortez, 2007).
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
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Em Londres, estamos perante a denúncia violenta de modelo que tem recursos para resgatar bancos, mas não os tem para uma juventude sem esperança
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Os motins na Inglaterra são um perturbador sinal dos tempos. Está a ser gerado nas sociedades um combustível altamente inflamável que flui nos subterrâneos da vida coletiva sem que se dê conta.
Esse combustível é constituído pela mistura de quatro componentes: a promoção conjunta da desigualdade social e do individualismo, a mercantilização da vida individual e coletiva, a prática do racismo em nome da tolerância, o sequestro da democracia por elites privilegiadas e a consequente transformação da política em administração do roubo "legal" dos cidadãos. Cada um dos componentes tem uma contradição interna.
Quando elas se sobrepõem, qualquer incidente pode provocar uma explosão de proporções inimagináveis. Com o neoliberalismo, o aumento da desigualdade social deixou de ser um problema para passar a ser a solução.
A ostentação dos ricos transformou-se em prova do êxito de um modelo social que só deixa na miséria a maioria dos cidadãos porque estes supostamente não se esforçam o suficiente para terem êxito.
Isso só foi possível com a conversão do individualismo em valor absoluto, o qual, contraditoriamente, só pode ser vivido como utopia da igualdade, da possibilidade de todos dispensarem por igual a solidariedade social, quer como agentes dela, quer como seus beneficiários.
Para o indivíduo assim construído, a desigualdade só é um problema quando lhe é adversa; quando isso sucede, nunca é reconhecida como merecida. Por outro lado, na sociedade de consumo, os objetos de consumo deixam de satisfazer necessidades para as criar incessantemente, e o investimento pessoal neles é tão intenso quando se têm como quando não se têm.
Entre acreditar que o dinheiro medeia tudo e acreditar que tudo pode ser feito para obtê-lo vai um passo muito curto. Os poderosos dão esse passo todos os dias sem que nada lhes aconteça. Os despossuídos, que pensam que podem fazer o mesmo, acabam nas prisões.
Os distúrbios na Inglaterra começaram com uma dimensão racial. São afloramentos da sociabilidade colonial que continua a dominar as nossas sociedades, muito tempo depois de terminar o colonialismo político. Um jovem negro das nossas cidades vive cotidianamente uma suspeição social que existe independentemente do que ele ou ela seja ou faça.
Tal suspeição é tanto mais virulenta quando ocorre numa sociedade distraída pelas políticas oficiais da luta contra a discriminação e pela fachada do multiculturalismo.
O que há de comum entre os distúrbios da Inglaterra e a destruição do bem-estar dos cidadãos provocada pelas políticas de austeridade comandadas por mercados financeiros? São sinais dos limites extremos da ordem democrática.
Os jovens amotinados são criminosos, mas não estamos perante uma "criminalidade pura e simples", como afirmou o primeiro-ministro David Cameron.
Estamos perante uma denúncia política violenta de um modelo social e político que tem recursos para resgatar bancos e não os tem para resgatar a juventude de uma vida sem esperança, do pesadelo de uma educação cada vez mais cara e mais irrelevante, dados o aumento do desemprego e o completo abandono em comunidades que as políticas públicas antissociais transformaram em campos de treino da raiva, da anomia e da revolta.
Entre o poder neoliberal instalado e os amotinados urbanos há uma simetria assustadora. A indiferença social, a arrogância, a distribuição injusta dos sacrifícios estão a semear o caos, a violência e o medo, e os semeadores dirão amanhã, genuinamente ofendidos, que o que semearam nada tem a ver com o caos, a violência e o medo instalados nas ruas das nossas cidades.
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BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, sociólogo português, é diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal). É autor, entre outros livros, de "Para uma Revolução Democrática da Justiça" (Cortez, 2007).
sábado, 16 de julho de 2011
Golpe de Estelionato
A MULHER QUE BENZIA DINHEIRO
Delze dos Santos Laureano
Em tempo de férias, vou aproveitar para contar um causo. Parece até golpe do bilhete de loteria premiado. De antemão confesso que tenho certo fascínio pelo crime de estelionato.
Contam que esse fato ocorreu em Guanhães, no apagar das luzes dos anos 1990. Eu já não morava mais por aquelas bandas, portanto não posso garantir que seja verdadeiro, mas fiquei sabendo do ocorrido em detalhes e até hoje fico pensando como pessoas honestas caíram no conto daquela vigarista. Uma coisa, porém é certa, a maioria que cai em golpe de estelionatário é gente ambiciosa. Valha-me Deus!
Neste caso, nem preciso avisar que caíram no conto da benzedeira os que já tinham riqueza, pois como é que pobre ia arranjar dinheiro para benzer? A mulher era especialista em benzer dinheiro vivo e depois passou a benzer jóia também.
Para quem ainda não conhece, Guanhães é uma dessas típicas cidades do interior de Minas. Vale a pena visitar. Lugar de muito morro, água boa, povo bom, hospitaleiro e bravo. Os mais antigos são de pouca conversa e até bem pouco tempo corria a notícia de que matavam por muito pouco. Não é à toa que ouvimos contar aquelas anedotas de paulistas e cariocas querendo tirar onda prá cima dos matutos. Mas..., matuto, pitando o seu cigarrinho de palha, sem se deixar enganar, manda os atrevidos embora “com três nós no rabo”. Quem acha que é fácil passar matuto para trás está muito enganado. Mas, infelizmente, prá aquelas bandas, há muito, já não temos mais matutos. Em todo canto chegou foi a modernidade, tempos em que se dá mesmo valor é a dinheiro. Por isso, vemos que a danada da benzedeira conseguiu passar muito espertinho para trás.
Ninguém precisa ficar magoado comigo por contar esse causo. Poderia ter acontecido em qualquer outro lugar, até mesmo no centro de Belo Horizonte, onde ocorrem golpes todos os dias. Mas prá matar a saudade, prefiro dizer que aconteceu mesmo em Guanhães. Ninguém se ofenda. Se ofensa fosse estaria eu ofendendo a mim mesma. Vamos então à história. Apareceu na cidade uma mulher desconhecida. Lugar pequeno, as pessoas logo foram se dando conta da chegada da distinta na praça, que começou a ter mais intimidade com um e com outro, esbanjando simpatia. (Já viram estelionatário antipático? Não existe.)
De repente, lá estava ela no fundo das cozinhas. De fato, quando menos damos fé já tratamos pessoas desconhecidas como se as conhecêssemos de longa data. Conversa vai, conversa vem, alguém começa a espalhar, no pé de ouvido, que a mulher tinha poderes sobrenaturais. Naquela época de grandes incertezas, década perdida, quando tantas agruras vivemos, não é de se estranhar a atribuição de dons sobrenaturais às pessoas. Os poderes ocultos aparecem para salvar o povo das dificuldades.
Mas o que fazia a mulher? Como já disse, benzia dinheiro. Era assim o procedimento: a pessoa trazia o dinheiro para a casa da benzedeira, à noite, dentro de um envelope fechado. Pela manhã, podia buscar o valor milagrosamente dobrado. Se se deixava, por exemplo, uma nota de 10, no dia seguinte havia duas notas de mesmo valor. A reza era braba mesmo! Pelo serviço a benzedeira pedia apenas uma ajuda voluntária para as obras sociais que dizia manter.
Como todo bom mineiro “só acredita na fumaça depois que vê o fogo”, foram os meus conterrâneos deixando o dinheirinho aos poucos. Todo dia arriscavam apenas um pouquinho. Ninguém tinha coragem de deixar quantia grande. Mas, dia após dia, a fama da mulher, que com certeza tinha um bom capital de giro, foi aumentando. E o poder sobrenatural daquela criatura foi sendo confirmado pelos que almejavam ganhar a vida fácil. Era só deixar o dinheiro e buscar o lucro no dia seguinte. Acredito que até os gerentes dos bancos e os agiotas começaram a ficar preocupados com a concorrência desleal. Todos sabiam ser impossível competir com a danada, mas abertamente ninguém falava da atividade ilícita na cidade. O boato corria silenciosamente, na base da amizade e do segredo. Muitos se apressavam para se dar bem.
Quando já tinha ganhado a confiança na praça, a vilã não titubeou. Armou o golpe de misericórdia. Começou a benzer também jóias. Essas é que poderiam enriquecer as pessoas de vez. Aí, virou uma festa. Ninguém mais duvidava. A mulher tinha mesmo super poderes. Gente que andava perdendo dinheiro e desanimada com os negócios começou a ver muita luz no fim do túnel. Era só ter uma jóia benzida que os negócios iam prá frente.
E assim muitos passaram a recorrer aos prodígios daquela “boa” mulher, que em troca dos serviços pedia apenas uma pequena contribuição. De um modo geral os valores morais e éticos tão significativos nas pequenas comunidades desapareceram naquele momento de euforia. Gente boa, sorrateiramente, passou a acreditar no ganho fácil, sem trabalho árduo, desde que tivessem as suas riquezas abençoadas pela mulher.
Como toda farsa, aquela festa também teve um fim. Não sei de que forma a maldita benzedeira conseguiu, sem que as pessoas percebessem, acumular numa mesma noite tanto dinheiro e jóias para benzer. Só sei que na véspera do ocorrido houve grandes saques nos bancos da cidade. Muito dinheiro e jóia passou silenciosamente pela porta da casa da vigarista, todavia, sem a menor garantia. A confiança era tamanha que se tornou desnecessário qualquer documento.
Na manhã seguinte aconteceu o inesperado. Melhor dizendo, o mais do que esperado. A mulher anoiteceu e não amanheceu na cidade. Até hoje ninguém sabe do seu paradeiro. Dinheiro e jóias foram os seus únicos companheiros naquela viagem solitária de fuga noite adentro. Minto, não foram seus únicos companheiros, porque naquela mesma noite um caminhão também havia sido deixado na porta da maldita com as chaves e o documento para receber a reza. Diziam, “mode” melhorar os negócios.
Alguns indignados, e até hoje desconcertados por terem caído no golpe, contam ressentidos terem levado todas as suas economias para a benção especial e final. Outros, silenciosos e envergonhados amargaram o prejuízo, mas juram nunca ter ocorrido tal fato na cidade. Não têm a coragem de reconhecer publicamente o maldito golpe do qual foram vítimas. Foi muito triste aquele fatídico dia na cidade. Aos prejudicados só restaram os suspiros e as pragas que rogaram para a maldita benzedeira que desapareceu na calada da noite.
E quem nunca caiu em conto de vigarista que invente outra!
Delze dos Santos Laureano
Em tempo de férias, vou aproveitar para contar um causo. Parece até golpe do bilhete de loteria premiado. De antemão confesso que tenho certo fascínio pelo crime de estelionato.
Contam que esse fato ocorreu em Guanhães, no apagar das luzes dos anos 1990. Eu já não morava mais por aquelas bandas, portanto não posso garantir que seja verdadeiro, mas fiquei sabendo do ocorrido em detalhes e até hoje fico pensando como pessoas honestas caíram no conto daquela vigarista. Uma coisa, porém é certa, a maioria que cai em golpe de estelionatário é gente ambiciosa. Valha-me Deus!
Neste caso, nem preciso avisar que caíram no conto da benzedeira os que já tinham riqueza, pois como é que pobre ia arranjar dinheiro para benzer? A mulher era especialista em benzer dinheiro vivo e depois passou a benzer jóia também.
Para quem ainda não conhece, Guanhães é uma dessas típicas cidades do interior de Minas. Vale a pena visitar. Lugar de muito morro, água boa, povo bom, hospitaleiro e bravo. Os mais antigos são de pouca conversa e até bem pouco tempo corria a notícia de que matavam por muito pouco. Não é à toa que ouvimos contar aquelas anedotas de paulistas e cariocas querendo tirar onda prá cima dos matutos. Mas..., matuto, pitando o seu cigarrinho de palha, sem se deixar enganar, manda os atrevidos embora “com três nós no rabo”. Quem acha que é fácil passar matuto para trás está muito enganado. Mas, infelizmente, prá aquelas bandas, há muito, já não temos mais matutos. Em todo canto chegou foi a modernidade, tempos em que se dá mesmo valor é a dinheiro. Por isso, vemos que a danada da benzedeira conseguiu passar muito espertinho para trás.
Ninguém precisa ficar magoado comigo por contar esse causo. Poderia ter acontecido em qualquer outro lugar, até mesmo no centro de Belo Horizonte, onde ocorrem golpes todos os dias. Mas prá matar a saudade, prefiro dizer que aconteceu mesmo em Guanhães. Ninguém se ofenda. Se ofensa fosse estaria eu ofendendo a mim mesma. Vamos então à história. Apareceu na cidade uma mulher desconhecida. Lugar pequeno, as pessoas logo foram se dando conta da chegada da distinta na praça, que começou a ter mais intimidade com um e com outro, esbanjando simpatia. (Já viram estelionatário antipático? Não existe.)
De repente, lá estava ela no fundo das cozinhas. De fato, quando menos damos fé já tratamos pessoas desconhecidas como se as conhecêssemos de longa data. Conversa vai, conversa vem, alguém começa a espalhar, no pé de ouvido, que a mulher tinha poderes sobrenaturais. Naquela época de grandes incertezas, década perdida, quando tantas agruras vivemos, não é de se estranhar a atribuição de dons sobrenaturais às pessoas. Os poderes ocultos aparecem para salvar o povo das dificuldades.
Mas o que fazia a mulher? Como já disse, benzia dinheiro. Era assim o procedimento: a pessoa trazia o dinheiro para a casa da benzedeira, à noite, dentro de um envelope fechado. Pela manhã, podia buscar o valor milagrosamente dobrado. Se se deixava, por exemplo, uma nota de 10, no dia seguinte havia duas notas de mesmo valor. A reza era braba mesmo! Pelo serviço a benzedeira pedia apenas uma ajuda voluntária para as obras sociais que dizia manter.
Como todo bom mineiro “só acredita na fumaça depois que vê o fogo”, foram os meus conterrâneos deixando o dinheirinho aos poucos. Todo dia arriscavam apenas um pouquinho. Ninguém tinha coragem de deixar quantia grande. Mas, dia após dia, a fama da mulher, que com certeza tinha um bom capital de giro, foi aumentando. E o poder sobrenatural daquela criatura foi sendo confirmado pelos que almejavam ganhar a vida fácil. Era só deixar o dinheiro e buscar o lucro no dia seguinte. Acredito que até os gerentes dos bancos e os agiotas começaram a ficar preocupados com a concorrência desleal. Todos sabiam ser impossível competir com a danada, mas abertamente ninguém falava da atividade ilícita na cidade. O boato corria silenciosamente, na base da amizade e do segredo. Muitos se apressavam para se dar bem.
Quando já tinha ganhado a confiança na praça, a vilã não titubeou. Armou o golpe de misericórdia. Começou a benzer também jóias. Essas é que poderiam enriquecer as pessoas de vez. Aí, virou uma festa. Ninguém mais duvidava. A mulher tinha mesmo super poderes. Gente que andava perdendo dinheiro e desanimada com os negócios começou a ver muita luz no fim do túnel. Era só ter uma jóia benzida que os negócios iam prá frente.
E assim muitos passaram a recorrer aos prodígios daquela “boa” mulher, que em troca dos serviços pedia apenas uma pequena contribuição. De um modo geral os valores morais e éticos tão significativos nas pequenas comunidades desapareceram naquele momento de euforia. Gente boa, sorrateiramente, passou a acreditar no ganho fácil, sem trabalho árduo, desde que tivessem as suas riquezas abençoadas pela mulher.
Como toda farsa, aquela festa também teve um fim. Não sei de que forma a maldita benzedeira conseguiu, sem que as pessoas percebessem, acumular numa mesma noite tanto dinheiro e jóias para benzer. Só sei que na véspera do ocorrido houve grandes saques nos bancos da cidade. Muito dinheiro e jóia passou silenciosamente pela porta da casa da vigarista, todavia, sem a menor garantia. A confiança era tamanha que se tornou desnecessário qualquer documento.
Na manhã seguinte aconteceu o inesperado. Melhor dizendo, o mais do que esperado. A mulher anoiteceu e não amanheceu na cidade. Até hoje ninguém sabe do seu paradeiro. Dinheiro e jóias foram os seus únicos companheiros naquela viagem solitária de fuga noite adentro. Minto, não foram seus únicos companheiros, porque naquela mesma noite um caminhão também havia sido deixado na porta da maldita com as chaves e o documento para receber a reza. Diziam, “mode” melhorar os negócios.
Alguns indignados, e até hoje desconcertados por terem caído no golpe, contam ressentidos terem levado todas as suas economias para a benção especial e final. Outros, silenciosos e envergonhados amargaram o prejuízo, mas juram nunca ter ocorrido tal fato na cidade. Não têm a coragem de reconhecer publicamente o maldito golpe do qual foram vítimas. Foi muito triste aquele fatídico dia na cidade. Aos prejudicados só restaram os suspiros e as pragas que rogaram para a maldita benzedeira que desapareceu na calada da noite.
E quem nunca caiu em conto de vigarista que invente outra!
sábado, 9 de julho de 2011
Cuidar da vida como bons pastores
Fé e Política: Espiritualidade, Ecologia e Economia
Delze dos Santos Laureano
Cuidar da vida sob as dimensões da Fé e da Política passa inevitavelmente pelo entendimento de qual é o nosso papel neste mundo como pessoas cristãs, considerando de antemão que somos seres sociais e políticos. Todos querem viver bem. E viver bem, acredito, é viver em paz, com espiritualidade plena em um ambiente ecologicamente saudável, tendo as necessidades vitais dignamente resolvidas, o que ocorre com a distribuição equânime dos recursos econômicos. Mas como vamos enfrentar essa tarefa de criar por meio da política as condições adequadas de convivência justa e solidária neste mundo?
Esse é um desafio a ser resolvido coletivamente. O poder político, que é terreno, somente poderá ser atribuído a seres humanos, pois sabemos da inexistência de deuses governantes. Platão, de forma eloquente, ensinou que a política não é o melhor lugar para projetarmos nossos anelos de uma existência perfeita, justa e feliz. Para isso seria necessário a volta à idade de ouro, ao governo dos filósofos-reis, o que é manifestamente impossível.
No mito de cronos temos a notícia de uma sociedade na qual os governantes não eram homens, mas semideuses (daimons), que graças à sua filantropia faziam reinar entre os homens a paz, a sólida justiça e a paz perpétua. Mas o mito conclui, e nisto é verdadeiro ainda hoje, nos estados onde reina não um deus, mas um mortal, os cidadãos não podem ser livres dos males e da labuta. Não há como eliminar o mal da vida humana imaginando vivermos em uma sociedade farta e sem trabalho, onde tudo já está pronto.
Diferentemente do que muitos acusam Platão não tentou legitimar o poder político absoluto, antidemocrático, atribuindo poder divino ao ser humano para a salvação de todos. O que nos mostra Platão é que no governo imperfeito de humanos as leis é que conduzem à virtude. Todavia, a nossa experiência revela que as leis estão sujeitas à interpretação. E a interpretação é a de quem está no poder. Leis não guardam em si mesmas um sentido determinado, surgindo daí a necessidade da participação de todos para que elas sejam aplicadas de forma justa.
Na Bíblia, no Salmo 23, o Bom Pastor, ajuda-nos no reconhecimento de uma trajetória humana rumo à realização plena do ser humano. Nas linhas, mas principalmente nas entrelinhas, o texto mostra a necessária interdependência de valores espirituais, ecológicos e econômicos para a realização integral do ser humano.
Mas, o que é ser um bom pastor? Platão mostra que o pastor é também ovelha. Na Bíblia o pastor é aquele que cuida conduzindo por águas tranqüilas. Ser pastor é seguir à frente, pois o vaqueiro é que vai atrás. O pastor segue adiante do rebanho com o seu cajado, descobrindo entre as pedras as falhas que põem em risco a vida. Todo caminho tem riscos e inimigos.
As “águas tranqüilas” – espiritualidade – é a paz na caminhada, fruto da justiça e do cuidado. É a mística e a paixão que nos guiam pela vida. Na política, o líder não pode se esquecer que conduz pessoas e não coisas. As “verdes pastagens” – ecologia - são lugar de descanso, mas também de caminhada. Lugar onde se sente prazer, contudo, sem cair nos riscos da zona de conforto. É preciso seguir sempre em frente e experimentar na nossa vida a partilha, “mesa farta” para todos – dimensão econômica -, onde transbordam taças, mesmo diante de adversidades.
Essa então a nossa morada, lugar onde poderemos ser ungidos com a certeza da vida plena: Travessia!
Nova Lima, 11 de julho de 2011.
Delze dos Santos Laureano
Cuidar da vida sob as dimensões da Fé e da Política passa inevitavelmente pelo entendimento de qual é o nosso papel neste mundo como pessoas cristãs, considerando de antemão que somos seres sociais e políticos. Todos querem viver bem. E viver bem, acredito, é viver em paz, com espiritualidade plena em um ambiente ecologicamente saudável, tendo as necessidades vitais dignamente resolvidas, o que ocorre com a distribuição equânime dos recursos econômicos. Mas como vamos enfrentar essa tarefa de criar por meio da política as condições adequadas de convivência justa e solidária neste mundo?
Esse é um desafio a ser resolvido coletivamente. O poder político, que é terreno, somente poderá ser atribuído a seres humanos, pois sabemos da inexistência de deuses governantes. Platão, de forma eloquente, ensinou que a política não é o melhor lugar para projetarmos nossos anelos de uma existência perfeita, justa e feliz. Para isso seria necessário a volta à idade de ouro, ao governo dos filósofos-reis, o que é manifestamente impossível.
No mito de cronos temos a notícia de uma sociedade na qual os governantes não eram homens, mas semideuses (daimons), que graças à sua filantropia faziam reinar entre os homens a paz, a sólida justiça e a paz perpétua. Mas o mito conclui, e nisto é verdadeiro ainda hoje, nos estados onde reina não um deus, mas um mortal, os cidadãos não podem ser livres dos males e da labuta. Não há como eliminar o mal da vida humana imaginando vivermos em uma sociedade farta e sem trabalho, onde tudo já está pronto.
Diferentemente do que muitos acusam Platão não tentou legitimar o poder político absoluto, antidemocrático, atribuindo poder divino ao ser humano para a salvação de todos. O que nos mostra Platão é que no governo imperfeito de humanos as leis é que conduzem à virtude. Todavia, a nossa experiência revela que as leis estão sujeitas à interpretação. E a interpretação é a de quem está no poder. Leis não guardam em si mesmas um sentido determinado, surgindo daí a necessidade da participação de todos para que elas sejam aplicadas de forma justa.
Na Bíblia, no Salmo 23, o Bom Pastor, ajuda-nos no reconhecimento de uma trajetória humana rumo à realização plena do ser humano. Nas linhas, mas principalmente nas entrelinhas, o texto mostra a necessária interdependência de valores espirituais, ecológicos e econômicos para a realização integral do ser humano.
Mas, o que é ser um bom pastor? Platão mostra que o pastor é também ovelha. Na Bíblia o pastor é aquele que cuida conduzindo por águas tranqüilas. Ser pastor é seguir à frente, pois o vaqueiro é que vai atrás. O pastor segue adiante do rebanho com o seu cajado, descobrindo entre as pedras as falhas que põem em risco a vida. Todo caminho tem riscos e inimigos.
As “águas tranqüilas” – espiritualidade – é a paz na caminhada, fruto da justiça e do cuidado. É a mística e a paixão que nos guiam pela vida. Na política, o líder não pode se esquecer que conduz pessoas e não coisas. As “verdes pastagens” – ecologia - são lugar de descanso, mas também de caminhada. Lugar onde se sente prazer, contudo, sem cair nos riscos da zona de conforto. É preciso seguir sempre em frente e experimentar na nossa vida a partilha, “mesa farta” para todos – dimensão econômica -, onde transbordam taças, mesmo diante de adversidades.
Essa então a nossa morada, lugar onde poderemos ser ungidos com a certeza da vida plena: Travessia!
Nova Lima, 11 de julho de 2011.
sexta-feira, 8 de julho de 2011
Relembrando a Carta a Pedro - para celebrar a 3a marcha de Dandara
Delze dos Santos Laureano
Para situar o leitor
A Comunidade Dandara é um exemplo de organização e luta por moradia e pelo direito à cidade em Belo Horizonte. No dia 05 de julho de 2011, mais de novecentas pessoas, entre homens, mulheres, crianças e idosos, percorreram os vinte e cinco quilômetros que separam aquele bairro da região central de Belo Horizonte. Além de mostrar ao Poder Judiciário a força de organização daquela comunidade (em vista da audiência que se realizava na mesma data, na 20ª Vara Civil, para decidir acerca da reintegração de posse requerida por uma empresa que se diz proprietária do imóvel), a marcha fortaleceu internamente os laços de solidariedade construídos ao longo desses 02 anos de resistência naquele território.
A organização e a determinação da Comunidade confirmam para todos os apoiadores: somente a luta educa para a cidadania. A consciência política para a conquista de direitos e para a responsabilidade cidadã não se limitou à conquista de um pedaço de terra.
Como tudo começou: muito medo, preconceito e difamação
O texto abaixo foi escrito em 2009:
Há algum tempo atrás, recebemos uma mensagem, via internet, de um morador do Bairro Céu Azul, em Belo Horizonte, bairro onde está localizada a ocupação Dandara. Lá, desde o dia 09 de abril de 2009, estavam acampadas, e agora estão morando, quase novecentas famílias sem teto e Sem Terra que estão contribuindo na construção de uma nova política urbanística e revelando, a partir da luta por moradia em Belo Horizonte, as grandes contradições e equívocos na política social e agrária em nosso país. As palavras do signatário deram-nos conta de como o senso comum e o preconceito podem atrapalhar a caminhada de uma sociedade rumo à solidariedade democrática. Em vista disso resolvemos, preservando a identidade do morador, usar as palavras do nosso interlocutor como ponto de partida para as reflexões que precisam ser feitas e, sobretudo, dialogadas como os moradores das regiões onde chegam essas novas famílias que lutam de forma organizada pelos territórios, urbanos e rurais.
Vamos chamar o nosso interlocutor de Pedro. Disse ele no e-mail:
Meu nome é Pedro. Sou morador do bairro Céu Azul há 30 anos. Meu pai, com muito sacrifício, comprou e pagou o lote, construiu uma casa e criou sua família. Seguindo o seu exemplo, casei, morei com meus pais e depois de oito anos eu e minha esposa adquirimos um lote e construímos nossa casa também no bairro Céu Azul. Desde 09/04/2009, toda a população do bairro está apreensiva com a iminência da criação de mais uma favela. E, para meu espanto com o apoio de setores da Igreja Católica e de sua Universidade. Não discordo do direito das pessoas de terem um teto para morar, mas que as coisas sejam feitas dentro da normalidade e legalidade , não invadindo terrenos e colocando lá pessoas de bem e outros tantos marginais e pessoas que já possuem casa (até mesmo no Céu Azul). Pelo encaminhamento desse processo, as famílias irão construir barracos naquele local, sem nenhuma infra-estrutura e será um "celeiro" para traficantes, ladrões e outras mazelas que nós brasileiros bem conhecemos. Daí, Frei Gilvander, o senhor e os outros "apoiadores" e "intelectuais" irão virar as costas para estas pessoas e passarão a acompanhar de seus apartamentos na zona sul, essa tragédia humana chamada OCUPAÇÃO DANDARA. Mas, continuo com esperança que a luz da razão ilumine a liderança deste movimento e procure uma solução mais sensata. Não crie mais um problema.”
Após pensarmos em todas as mazelas que resultaram, não apenas no Brasil mas em toda a América Latina, em tanta desigualdade social -mazelas essas que podem ser melhor identificadas nos processos históricos irresponsáveis da colonização européia de expansão capitalista, da ditadura militar e mais recentemente da exploração neoliberal -, formulamos a seguinte resposta ao Pedro.
Caro Pedro, nós, os apoiadores da Comunidade Dandara, somos pessoas comuns, trabalhadoras como você, também somos pais, mães e filhos de trabalhadores explorados ao longo da história deste país. Começamos a trabalhar bem cedo, mas descobrimos que não podíamos ficar acomodados, de braços cruzados dentro da “normalidade e da legalidade” com os pequenos privilégios (direitos conquistados pelos trabalhadores na luta), esperando a nossa aposentadoria, acreditando que os processos de inclusão social, ou seja, a construção de uma sociedade mais justa, fundada no princípio da igualdade, aconteça pelas vias políticas tradicionais. A democracia representativa, essa que você chama de via da normalidade, está sem crédito no mundo inteiro. Os políticos exercem os seus mandatos preocupados com a reeleição. Assim, todos os passos são calculados, só fazem o que vai lhes render mais benefícios no futuro. E para isso fazem pesquisas, aliam-se aos que têm dinheiro, manipulam junto com a mídia as informações. Ao final fazem as regras, que você chama de legalidade, para se beneficiar e para manter tudo como está. Mais dinheiro para quem já tem dinheiro, mais propriedade para quem já tem propriedade.
Por tudo isso é que acreditamos que há muito caminho a ser percorrido, no Brasil e na América Latina, rumo à igualdade. Precisamos conquistar o apoio de pessoas como você, que não faz parte da elite e não tem nada a ganhar com a manutenção de um terreno de 40 hectares, totalmente ocioso, abandonado mesmo, em Belo Horizonte. Veja você, essa é uma região na qual o poder público investiu muito dinheiro, e de toda a sociedade, com asfalto, iluminação pública, rede de água e esgoto. Manter esse terreno vazio por tanto tempo chama-se especulação imobiliária. Além disso há fortes indícios de grilagem e da doação política de terras por agentes públicos na região da Pampulha no passado.
Pedro, o fato de você gastar o seu tempo mandando a mensagem, externando a sua preocupação, é sinal de que quer construir um espaço saudável de convivência. E é isso mesmo que nós queremos também. Não dá mais para apoiarmos falsos projetos de cidade, que isolam os “indesejáveis” (ou eufemisticamente gente diferenciada) bem longe, onerando-lhes o transporte, dificultando-lhes o acesso ao trabalho e renda, aos serviços públicos de saúde, à educação e ao mesmo tempo construindo-se ilhas de tranquilidade em determinados lugares para os mesmos privilegiados, sem contar com o enriquecendo de uns poucos com a especulação imobiliária.
Não podemos compreender sozinhos toda a realidade que nos cerca. Os meios de comunicação em massa noticiam os fatos de acordo com a conveniência dos patrocinadores deles, você não acha? Existe um conluio entre a grande mídia, os políticos e os grandes exploradores capitalistas, bancos, multinacionais, grandes construtoras e empresas mineradoras. Somente chegam até nós as notícias filtradas por eles. Se olharmos bem, nas novelas e na vida dos artistas, como mostrado na televisão, está tudo ótimo no Brasil. O ex-governador de Minas mesmo, o Aécio Neves, foi denunciado várias vezes por violar a liberdade de informação aqui no estado, não deixando que fossem mostradas as mazelas sociais e a violência. Saiu por cima. Elegeu-se senador e agora continua decidindo a nossa vida a partir de Brasília.
Pensamos que se te incomoda a Ocupação Dandara é porque você ainda não conhece bem o que ocorre ali. E realmente pode ter gente na Ocupação que não precisa de casa, que tenta usar a luta de muitos para levar vantagem pessoal. Mas, isso não deslegitima a luta dos que precisam. Em qualquer lugar onde haja seres humanos existem desvios, “pecados”. Existem professores que não merecem esse nome, existem padres que não são sensíveis às causas dos pobres, existem médicos que não deveriam ter o direito de exercer a profissão, e vai por aí a fora. Todavia, a maioria é digna e merece o nosso respeito. Se um sai da exclusão ganha toda a sociedade.
Você mesmo admite que o seu pai somente comprou e pagou o lote onde morou com muito sacrifício. E isso é verdade. No Brasil, o direito de morar foi transferido para a própria população que tem de se virar. Mas não deveria ser o contrário? Se um país quer pessoas saudáveis, pessoas boas trabalhando para desenvolver o país, não deveria em primeiro lugar cuidar para que essas pessoas vivessem com dignidade? Diante desta constatação é que sugerimos a você, ao invés de questionar os apoiadores e as famílias que têm resistido naquele frio e às vezes na chuva e no sol, passando toda a sorte de dificuldades nas barracas, nos barracões frágeis que sequer resistem à ventania, inclusive o criminoso corte da água pela poderosa COPASA, questione toda essa injustiça social, que impõe tanto sacrifício às famílias para adquirirem um pedaço de chão - mesmo para os milhares de desempregados – em um país continental como o Brasil. Nós temos 8,5 milhões de quilômetros quadrados de território e uma população pequena em relação ao tamanho do território, que sofre sem terra para trabalhar e sem casa para morar.
Pedro, o Brasil é um país rico. Você já se deu conta de que muitos não têm casa e emprego porque tem gente que tem propriedade ilegal demais, dinheiro demais, não tributado conforme as leis, e uma grande maioria vivendo que nem bicho pelas ruas. Ou condenados ao isolamento no interior do país desprovido de energia, de estradas, de escolas, de alimentos e serviços de saúde pública? A nossa normalidade e legalidade política são muito injustas e não podem ser invocadas à luz da Constituição de 1988. O poder só age para beneficiar os amigos de quem está no poder. E é contra esse poder, que faz da cidade um espaço para poucos e que joga os demais na periferia de tudo - do transporte, da saúde, da moradia, da escola, da religião -, é que lutamos. Lutamos não só pelos trabalhadores da Ocupação Dandara, lutamos também por você, pelo meio ambiente, pela justiça social, pela política legítima.
Não se preocupe, não estamos levando uma favela para o bairro Céu Azul. A comunidade Dandara nasceu ali após a conscientização de trabalhadores pobres que descobriram por meio da organização democrática que somente juntos poderiam sonhar com uma vida melhor. Temos a certeza de que esses trabalhadores que chegam ao Céu Azul agora serão melhores vizinhos para você que os outros bairros ricos de Belo Horizonte. Sabe por quê? Primeiro, porque nas classes médias altas ninguém se conhece. Normalmente não existe solidariedade entre as pessoas. Eles, de um modo geral têm medo de tudo. Segundo, porque existem drogas e violência em qualquer lugar. Quantos assaltos ocorrem nesses condomínios de luxo?
Quer uma boa notícia? A Comunidade Dandara foi planejada pelos arquitetos da PUC sim. Não porque esses profissionais querem desvalorizar os imóveis dos moradores do bairro Céu Azul, mas porque esses profissionais, capazes de compreender a realidade social existente, entendem que todos têm o direito de morar com dignidade. Fizeram um projeto muito bonito, apesar de simples, para a Ocupação Dandara. Junto com os arquitetos, diversos professores, advogados, pedreiros, religiosos, mães e pais de família arregaçaram as mangas para contribuir na educação de crianças e adultos. Acreditamos que uma sociedade boa é o resultado da educação para se viver em sociedade. Nenhuma sociedade ideal cai do céu, ela é fruto da ação coletiva de todos os que integram essa sociedade mesma. Crianças, desempregados, idosos, mães e pais pobres devem ser cuidados e não abandonados à própria sorte. Se o governo não faz, dentro da normalidade e da legalidade - já que moradia, educação e todos os direitos sociais decorrem da Constituição - nós temos de forçar o governo a fazer.
Já finalizando, gostaríamos de dar-lhe um conselho. Marque com as lideranças uma visita à Ocupação Dandara. Conheça as dificuldades para se resgatar a vida após tanta injustiça social sofrida. Conheça pessoas maravilhosas e inteligentes que vivem ali e cujos filhos às vezes são mesmo vítimas do tráfico. Há também crianças que são vítimas da violência, mulheres cujos maridos são vítimas do alcoolismo. Mas veja, eles mesmos não lucram com tudo isso. Contrariamente há alguém de fora que lucra: jornais sensacionalistas, igrejas descomprometidas com a verdadeira espitualidade, empresas que só pensam no lucro. Sugerimos que você, como bom vizinho, fique amigos dos moradores da Ocupação Dandara. Passe a ver neles seres humanos, pessoas que merecem o nosso apoio e respeito. Veja neles brasileiros, não pessoas que ameaçam qualquer território. Ofereça a eles algum de seus dons, talentos para melhorar a vida de todos. Lá impera a necessidade sim. Precisa-se de tudo. Precisa-se de gente que sabe construir, ler projetos, usar trenas, costurar, ler e escrever. Precisa-se, sobretudo, de gente capaz de ver além das lentes do preconceito e do senso comum.
Tenho certeza que assim você não terá medo daquelas pessoas e nem verá ali um celeiro para o tráfico ou uma maldição que desvalorizará o seu imóvel. Poderá, desta forma, passar a chamá-los pelo nome e verá neles parceiros capazes de expulsar do bairro os traficantes ou os praticantes de outros crimes, principalmente os oportunistas das empresas da especulação imobiliária. Com você, então, cuidaremos melhor do nosso país inteiro, e não apenas no ambiente mais próximo, porque sabemos que não existem muros capazes de manter a desigualdade longe de nós.
Finalmente, não se preocupe conosco, os apoiadores da Dandara. Não vamos nos trancar em nossos apartamentos na zona sul. Somos cidadãos no mundo. Fazemos parte de uma tribo que acredita ser importante juntar todos numa grande Comunidade Dandara! Venha para esta tribo você também. Veja como a sua vida ganhará novo significado! Não temos medo de pobres e lutadores, temos medo é de uma sociedade cujas pessoas acham que já resolveram a sua vida, mesmo passando dificuldades, sem aprender com as mazelas sociais e viram as costas para os outros.
Uma nova mensagem para o nosso leitor
Receba o nosso abraço fraterno - fraternidade que nos ensina a Comunidade Dandara -, neste momento em que celebramos a 3ª Marcha pelo Direito à Cidade e pela dignidade da pessoa humana!
Para situar o leitor
A Comunidade Dandara é um exemplo de organização e luta por moradia e pelo direito à cidade em Belo Horizonte. No dia 05 de julho de 2011, mais de novecentas pessoas, entre homens, mulheres, crianças e idosos, percorreram os vinte e cinco quilômetros que separam aquele bairro da região central de Belo Horizonte. Além de mostrar ao Poder Judiciário a força de organização daquela comunidade (em vista da audiência que se realizava na mesma data, na 20ª Vara Civil, para decidir acerca da reintegração de posse requerida por uma empresa que se diz proprietária do imóvel), a marcha fortaleceu internamente os laços de solidariedade construídos ao longo desses 02 anos de resistência naquele território.
A organização e a determinação da Comunidade confirmam para todos os apoiadores: somente a luta educa para a cidadania. A consciência política para a conquista de direitos e para a responsabilidade cidadã não se limitou à conquista de um pedaço de terra.
Como tudo começou: muito medo, preconceito e difamação
O texto abaixo foi escrito em 2009:
Há algum tempo atrás, recebemos uma mensagem, via internet, de um morador do Bairro Céu Azul, em Belo Horizonte, bairro onde está localizada a ocupação Dandara. Lá, desde o dia 09 de abril de 2009, estavam acampadas, e agora estão morando, quase novecentas famílias sem teto e Sem Terra que estão contribuindo na construção de uma nova política urbanística e revelando, a partir da luta por moradia em Belo Horizonte, as grandes contradições e equívocos na política social e agrária em nosso país. As palavras do signatário deram-nos conta de como o senso comum e o preconceito podem atrapalhar a caminhada de uma sociedade rumo à solidariedade democrática. Em vista disso resolvemos, preservando a identidade do morador, usar as palavras do nosso interlocutor como ponto de partida para as reflexões que precisam ser feitas e, sobretudo, dialogadas como os moradores das regiões onde chegam essas novas famílias que lutam de forma organizada pelos territórios, urbanos e rurais.
Vamos chamar o nosso interlocutor de Pedro. Disse ele no e-mail:
Meu nome é Pedro. Sou morador do bairro Céu Azul há 30 anos. Meu pai, com muito sacrifício, comprou e pagou o lote, construiu uma casa e criou sua família. Seguindo o seu exemplo, casei, morei com meus pais e depois de oito anos eu e minha esposa adquirimos um lote e construímos nossa casa também no bairro Céu Azul. Desde 09/04/2009, toda a população do bairro está apreensiva com a iminência da criação de mais uma favela. E, para meu espanto com o apoio de setores da Igreja Católica e de sua Universidade. Não discordo do direito das pessoas de terem um teto para morar, mas que as coisas sejam feitas dentro da normalidade e legalidade , não invadindo terrenos e colocando lá pessoas de bem e outros tantos marginais e pessoas que já possuem casa (até mesmo no Céu Azul). Pelo encaminhamento desse processo, as famílias irão construir barracos naquele local, sem nenhuma infra-estrutura e será um "celeiro" para traficantes, ladrões e outras mazelas que nós brasileiros bem conhecemos. Daí, Frei Gilvander, o senhor e os outros "apoiadores" e "intelectuais" irão virar as costas para estas pessoas e passarão a acompanhar de seus apartamentos na zona sul, essa tragédia humana chamada OCUPAÇÃO DANDARA. Mas, continuo com esperança que a luz da razão ilumine a liderança deste movimento e procure uma solução mais sensata. Não crie mais um problema.”
Após pensarmos em todas as mazelas que resultaram, não apenas no Brasil mas em toda a América Latina, em tanta desigualdade social -mazelas essas que podem ser melhor identificadas nos processos históricos irresponsáveis da colonização européia de expansão capitalista, da ditadura militar e mais recentemente da exploração neoliberal -, formulamos a seguinte resposta ao Pedro.
Caro Pedro, nós, os apoiadores da Comunidade Dandara, somos pessoas comuns, trabalhadoras como você, também somos pais, mães e filhos de trabalhadores explorados ao longo da história deste país. Começamos a trabalhar bem cedo, mas descobrimos que não podíamos ficar acomodados, de braços cruzados dentro da “normalidade e da legalidade” com os pequenos privilégios (direitos conquistados pelos trabalhadores na luta), esperando a nossa aposentadoria, acreditando que os processos de inclusão social, ou seja, a construção de uma sociedade mais justa, fundada no princípio da igualdade, aconteça pelas vias políticas tradicionais. A democracia representativa, essa que você chama de via da normalidade, está sem crédito no mundo inteiro. Os políticos exercem os seus mandatos preocupados com a reeleição. Assim, todos os passos são calculados, só fazem o que vai lhes render mais benefícios no futuro. E para isso fazem pesquisas, aliam-se aos que têm dinheiro, manipulam junto com a mídia as informações. Ao final fazem as regras, que você chama de legalidade, para se beneficiar e para manter tudo como está. Mais dinheiro para quem já tem dinheiro, mais propriedade para quem já tem propriedade.
Por tudo isso é que acreditamos que há muito caminho a ser percorrido, no Brasil e na América Latina, rumo à igualdade. Precisamos conquistar o apoio de pessoas como você, que não faz parte da elite e não tem nada a ganhar com a manutenção de um terreno de 40 hectares, totalmente ocioso, abandonado mesmo, em Belo Horizonte. Veja você, essa é uma região na qual o poder público investiu muito dinheiro, e de toda a sociedade, com asfalto, iluminação pública, rede de água e esgoto. Manter esse terreno vazio por tanto tempo chama-se especulação imobiliária. Além disso há fortes indícios de grilagem e da doação política de terras por agentes públicos na região da Pampulha no passado.
Pedro, o fato de você gastar o seu tempo mandando a mensagem, externando a sua preocupação, é sinal de que quer construir um espaço saudável de convivência. E é isso mesmo que nós queremos também. Não dá mais para apoiarmos falsos projetos de cidade, que isolam os “indesejáveis” (ou eufemisticamente gente diferenciada) bem longe, onerando-lhes o transporte, dificultando-lhes o acesso ao trabalho e renda, aos serviços públicos de saúde, à educação e ao mesmo tempo construindo-se ilhas de tranquilidade em determinados lugares para os mesmos privilegiados, sem contar com o enriquecendo de uns poucos com a especulação imobiliária.
Não podemos compreender sozinhos toda a realidade que nos cerca. Os meios de comunicação em massa noticiam os fatos de acordo com a conveniência dos patrocinadores deles, você não acha? Existe um conluio entre a grande mídia, os políticos e os grandes exploradores capitalistas, bancos, multinacionais, grandes construtoras e empresas mineradoras. Somente chegam até nós as notícias filtradas por eles. Se olharmos bem, nas novelas e na vida dos artistas, como mostrado na televisão, está tudo ótimo no Brasil. O ex-governador de Minas mesmo, o Aécio Neves, foi denunciado várias vezes por violar a liberdade de informação aqui no estado, não deixando que fossem mostradas as mazelas sociais e a violência. Saiu por cima. Elegeu-se senador e agora continua decidindo a nossa vida a partir de Brasília.
Pensamos que se te incomoda a Ocupação Dandara é porque você ainda não conhece bem o que ocorre ali. E realmente pode ter gente na Ocupação que não precisa de casa, que tenta usar a luta de muitos para levar vantagem pessoal. Mas, isso não deslegitima a luta dos que precisam. Em qualquer lugar onde haja seres humanos existem desvios, “pecados”. Existem professores que não merecem esse nome, existem padres que não são sensíveis às causas dos pobres, existem médicos que não deveriam ter o direito de exercer a profissão, e vai por aí a fora. Todavia, a maioria é digna e merece o nosso respeito. Se um sai da exclusão ganha toda a sociedade.
Você mesmo admite que o seu pai somente comprou e pagou o lote onde morou com muito sacrifício. E isso é verdade. No Brasil, o direito de morar foi transferido para a própria população que tem de se virar. Mas não deveria ser o contrário? Se um país quer pessoas saudáveis, pessoas boas trabalhando para desenvolver o país, não deveria em primeiro lugar cuidar para que essas pessoas vivessem com dignidade? Diante desta constatação é que sugerimos a você, ao invés de questionar os apoiadores e as famílias que têm resistido naquele frio e às vezes na chuva e no sol, passando toda a sorte de dificuldades nas barracas, nos barracões frágeis que sequer resistem à ventania, inclusive o criminoso corte da água pela poderosa COPASA, questione toda essa injustiça social, que impõe tanto sacrifício às famílias para adquirirem um pedaço de chão - mesmo para os milhares de desempregados – em um país continental como o Brasil. Nós temos 8,5 milhões de quilômetros quadrados de território e uma população pequena em relação ao tamanho do território, que sofre sem terra para trabalhar e sem casa para morar.
Pedro, o Brasil é um país rico. Você já se deu conta de que muitos não têm casa e emprego porque tem gente que tem propriedade ilegal demais, dinheiro demais, não tributado conforme as leis, e uma grande maioria vivendo que nem bicho pelas ruas. Ou condenados ao isolamento no interior do país desprovido de energia, de estradas, de escolas, de alimentos e serviços de saúde pública? A nossa normalidade e legalidade política são muito injustas e não podem ser invocadas à luz da Constituição de 1988. O poder só age para beneficiar os amigos de quem está no poder. E é contra esse poder, que faz da cidade um espaço para poucos e que joga os demais na periferia de tudo - do transporte, da saúde, da moradia, da escola, da religião -, é que lutamos. Lutamos não só pelos trabalhadores da Ocupação Dandara, lutamos também por você, pelo meio ambiente, pela justiça social, pela política legítima.
Não se preocupe, não estamos levando uma favela para o bairro Céu Azul. A comunidade Dandara nasceu ali após a conscientização de trabalhadores pobres que descobriram por meio da organização democrática que somente juntos poderiam sonhar com uma vida melhor. Temos a certeza de que esses trabalhadores que chegam ao Céu Azul agora serão melhores vizinhos para você que os outros bairros ricos de Belo Horizonte. Sabe por quê? Primeiro, porque nas classes médias altas ninguém se conhece. Normalmente não existe solidariedade entre as pessoas. Eles, de um modo geral têm medo de tudo. Segundo, porque existem drogas e violência em qualquer lugar. Quantos assaltos ocorrem nesses condomínios de luxo?
Quer uma boa notícia? A Comunidade Dandara foi planejada pelos arquitetos da PUC sim. Não porque esses profissionais querem desvalorizar os imóveis dos moradores do bairro Céu Azul, mas porque esses profissionais, capazes de compreender a realidade social existente, entendem que todos têm o direito de morar com dignidade. Fizeram um projeto muito bonito, apesar de simples, para a Ocupação Dandara. Junto com os arquitetos, diversos professores, advogados, pedreiros, religiosos, mães e pais de família arregaçaram as mangas para contribuir na educação de crianças e adultos. Acreditamos que uma sociedade boa é o resultado da educação para se viver em sociedade. Nenhuma sociedade ideal cai do céu, ela é fruto da ação coletiva de todos os que integram essa sociedade mesma. Crianças, desempregados, idosos, mães e pais pobres devem ser cuidados e não abandonados à própria sorte. Se o governo não faz, dentro da normalidade e da legalidade - já que moradia, educação e todos os direitos sociais decorrem da Constituição - nós temos de forçar o governo a fazer.
Já finalizando, gostaríamos de dar-lhe um conselho. Marque com as lideranças uma visita à Ocupação Dandara. Conheça as dificuldades para se resgatar a vida após tanta injustiça social sofrida. Conheça pessoas maravilhosas e inteligentes que vivem ali e cujos filhos às vezes são mesmo vítimas do tráfico. Há também crianças que são vítimas da violência, mulheres cujos maridos são vítimas do alcoolismo. Mas veja, eles mesmos não lucram com tudo isso. Contrariamente há alguém de fora que lucra: jornais sensacionalistas, igrejas descomprometidas com a verdadeira espitualidade, empresas que só pensam no lucro. Sugerimos que você, como bom vizinho, fique amigos dos moradores da Ocupação Dandara. Passe a ver neles seres humanos, pessoas que merecem o nosso apoio e respeito. Veja neles brasileiros, não pessoas que ameaçam qualquer território. Ofereça a eles algum de seus dons, talentos para melhorar a vida de todos. Lá impera a necessidade sim. Precisa-se de tudo. Precisa-se de gente que sabe construir, ler projetos, usar trenas, costurar, ler e escrever. Precisa-se, sobretudo, de gente capaz de ver além das lentes do preconceito e do senso comum.
Tenho certeza que assim você não terá medo daquelas pessoas e nem verá ali um celeiro para o tráfico ou uma maldição que desvalorizará o seu imóvel. Poderá, desta forma, passar a chamá-los pelo nome e verá neles parceiros capazes de expulsar do bairro os traficantes ou os praticantes de outros crimes, principalmente os oportunistas das empresas da especulação imobiliária. Com você, então, cuidaremos melhor do nosso país inteiro, e não apenas no ambiente mais próximo, porque sabemos que não existem muros capazes de manter a desigualdade longe de nós.
Finalmente, não se preocupe conosco, os apoiadores da Dandara. Não vamos nos trancar em nossos apartamentos na zona sul. Somos cidadãos no mundo. Fazemos parte de uma tribo que acredita ser importante juntar todos numa grande Comunidade Dandara! Venha para esta tribo você também. Veja como a sua vida ganhará novo significado! Não temos medo de pobres e lutadores, temos medo é de uma sociedade cujas pessoas acham que já resolveram a sua vida, mesmo passando dificuldades, sem aprender com as mazelas sociais e viram as costas para os outros.
Uma nova mensagem para o nosso leitor
Receba o nosso abraço fraterno - fraternidade que nos ensina a Comunidade Dandara -, neste momento em que celebramos a 3ª Marcha pelo Direito à Cidade e pela dignidade da pessoa humana!
quarta-feira, 29 de junho de 2011
Esse homem vai morrer
Delze Laureano e Gilvander Moreira
Esse homem vai morrer - Um faroeste caboclo. Esse é o nome do documentário de 75 minutos, dirigido por Emilio Gallo, e exibido com a presença do diretor, no dia 27 de junho de 2011, na Associação do Ministério Público Estadual de Minas Gerais em Belo Horizonte. Ao final, houve um debate com os presentes que puderam constatar como o tema é antigo e ao mesmo tempo atual. É antigo, porque lá se vão 25 anos do assassinato de João Canuto, militante da reforma agrária, filiado ao PCB, e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, no estado do Pará. Canuto foi morto em 18 de dezembro de 1985, com 18 tiros. O fato mobilizou artistas, políticos e entidades internacionais, à época, para proteger outros líderes sindicais, religiosos e advogados ameaçados de morte na região. E, é tema atual porque no dia 24 de maio deste ano, José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, líderes extrativistas, considerados sucessores de Chico Mendes, foram executados na cidade de Nova Ipixuna, no sudeste do Pará, cidade a 390 quilômetros de Belém. Além desses, dados registrados pelos agentes da Comissão Pastoral da Terra – CPT - mostram muitas ameaças e mortes de trabalhadores e lideranças rurais em todas as regiões do Brasil.
A sinopse do filme é a seguinte: “Um sonho atraiu vários brasileiros ao município de Rio Maria, no Sul do Pará, e se transformou numa sentença: 14 pessoas marcadas para morrer. Cartas denunciando os conflitos foram escritas para juízes, ministros e até para presidentes da república, mas nenhuma providência foi tomada.” O documentário, produzido com pequeno orçamento e, segundo o diretor, sem o apoio financeiro de empresas privadas e do governo, tornou-se possível, após cinco anos, porque houve determinação em fazê-lo e porque os fatos não recomendavam ser novamente adiado o lançamento. Feliz da vida ele disse categórico: “O filme, no segundo dia após o lançamento já estava na internet. Ótimo, baixem e multipliquem ao máximo!”
O diretor poderia ter seguido por diversos caminhos na narrativa. Nos moldes de Mel Gibson poderia mostrar muito sangue, pois gente morta, e com morte violenta, não faltou. Poderia ter optado pelo melodrama. Sobram cemitérios, crianças, viúvas e idosos, que parecem errantes naquelas terras sem lei. Contudo, Gallo preferiu mostrar, com os poucos recursos de que dispunha, e o fez magistralmente, pelo viés da insegurança dos marcados para morrer. Fez jus ao título: “Esse homem vai morrer!” O protagonista, Padre Ricardo Rezende, voltou a Rio Maria para reencontrar as pessoas e para contar as reais causas da violência. E ele não para. Ao contar o ocorrido caminha sempre, deixando-nos inquietos. (Melhor seria sentar e nos tranqüilizar dizendo que tudo não passa de uma narrativa...) Ali campeia a lei do silêncio. Quem vê e/ou ouve, se falar, morre. “Todo mundo sabe quem está marcado para morrer”, sabe até quem ardilosamente manda matar, pois fazem até consórcio de fazendeiros para financiar jagunços. Quem ousa desafiar a lei do silêncio pode ser o próximo eliminado.
Vendo tudo aquilo, perguntamo-nos: por que as pessoas não fogem desses lugares? Vendo o filme podemos responder. Porque muitas vezes a bestialização da violência é tamanha que nos falta perna para sair do lugar. E as lideranças, como podem sair e deixar o povo desamparado nas garras dos mandantes e jagunços? Decisão difícil. Nós mesmos ficamos plantados (chapados, como disse Gallo) na cadeira diante da tela.
Assim, o movimento de câmera, as falas dos sobreviventes e as imagens escolhidas pelo diretor embaralham a nossa vista. As pessoas caminhando - feito penitentes – naquele território onde boi vale muito mais que gente, totalmente desprotegidas, produzem em nós a sensação de absoluta fragilidade, incerteza quanto ao que poderá acontecer no momento seguinte. São rostos que parecem não mais caber na tela, tiros que podem estourar os nossos ouvidos a cada minuto.
Vale a pena conferir esse documentário. O desprendimento do diretor e dos artistas, especialmente Dira Paes consagrada atriz e militante dos direitos humanos, que emprestaram crédito ao trabalho é a esperança de mudar essa realidade que parece não ter fim. Parabéns ao diretor Emílio Gallo e a todos os que trabalharam para que esse documentário viesse a público. Simples e certeiro.
Fechando bem a noite, representantes da CPT lançaram, em Belo Horizonte, o Livro Conflitos no Campo Brasil 2010. Os dados estão aí para mostrar como a luta pelo território, invadido pelas multinacionais e pela velha oligarquia agrária, é sempre cruel para com os pobres da terra.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 29 de junho de 2011
Esse homem vai morrer - Um faroeste caboclo. Esse é o nome do documentário de 75 minutos, dirigido por Emilio Gallo, e exibido com a presença do diretor, no dia 27 de junho de 2011, na Associação do Ministério Público Estadual de Minas Gerais em Belo Horizonte. Ao final, houve um debate com os presentes que puderam constatar como o tema é antigo e ao mesmo tempo atual. É antigo, porque lá se vão 25 anos do assassinato de João Canuto, militante da reforma agrária, filiado ao PCB, e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, no estado do Pará. Canuto foi morto em 18 de dezembro de 1985, com 18 tiros. O fato mobilizou artistas, políticos e entidades internacionais, à época, para proteger outros líderes sindicais, religiosos e advogados ameaçados de morte na região. E, é tema atual porque no dia 24 de maio deste ano, José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, líderes extrativistas, considerados sucessores de Chico Mendes, foram executados na cidade de Nova Ipixuna, no sudeste do Pará, cidade a 390 quilômetros de Belém. Além desses, dados registrados pelos agentes da Comissão Pastoral da Terra – CPT - mostram muitas ameaças e mortes de trabalhadores e lideranças rurais em todas as regiões do Brasil.
A sinopse do filme é a seguinte: “Um sonho atraiu vários brasileiros ao município de Rio Maria, no Sul do Pará, e se transformou numa sentença: 14 pessoas marcadas para morrer. Cartas denunciando os conflitos foram escritas para juízes, ministros e até para presidentes da república, mas nenhuma providência foi tomada.” O documentário, produzido com pequeno orçamento e, segundo o diretor, sem o apoio financeiro de empresas privadas e do governo, tornou-se possível, após cinco anos, porque houve determinação em fazê-lo e porque os fatos não recomendavam ser novamente adiado o lançamento. Feliz da vida ele disse categórico: “O filme, no segundo dia após o lançamento já estava na internet. Ótimo, baixem e multipliquem ao máximo!”
O diretor poderia ter seguido por diversos caminhos na narrativa. Nos moldes de Mel Gibson poderia mostrar muito sangue, pois gente morta, e com morte violenta, não faltou. Poderia ter optado pelo melodrama. Sobram cemitérios, crianças, viúvas e idosos, que parecem errantes naquelas terras sem lei. Contudo, Gallo preferiu mostrar, com os poucos recursos de que dispunha, e o fez magistralmente, pelo viés da insegurança dos marcados para morrer. Fez jus ao título: “Esse homem vai morrer!” O protagonista, Padre Ricardo Rezende, voltou a Rio Maria para reencontrar as pessoas e para contar as reais causas da violência. E ele não para. Ao contar o ocorrido caminha sempre, deixando-nos inquietos. (Melhor seria sentar e nos tranqüilizar dizendo que tudo não passa de uma narrativa...) Ali campeia a lei do silêncio. Quem vê e/ou ouve, se falar, morre. “Todo mundo sabe quem está marcado para morrer”, sabe até quem ardilosamente manda matar, pois fazem até consórcio de fazendeiros para financiar jagunços. Quem ousa desafiar a lei do silêncio pode ser o próximo eliminado.
Vendo tudo aquilo, perguntamo-nos: por que as pessoas não fogem desses lugares? Vendo o filme podemos responder. Porque muitas vezes a bestialização da violência é tamanha que nos falta perna para sair do lugar. E as lideranças, como podem sair e deixar o povo desamparado nas garras dos mandantes e jagunços? Decisão difícil. Nós mesmos ficamos plantados (chapados, como disse Gallo) na cadeira diante da tela.
Assim, o movimento de câmera, as falas dos sobreviventes e as imagens escolhidas pelo diretor embaralham a nossa vista. As pessoas caminhando - feito penitentes – naquele território onde boi vale muito mais que gente, totalmente desprotegidas, produzem em nós a sensação de absoluta fragilidade, incerteza quanto ao que poderá acontecer no momento seguinte. São rostos que parecem não mais caber na tela, tiros que podem estourar os nossos ouvidos a cada minuto.
Vale a pena conferir esse documentário. O desprendimento do diretor e dos artistas, especialmente Dira Paes consagrada atriz e militante dos direitos humanos, que emprestaram crédito ao trabalho é a esperança de mudar essa realidade que parece não ter fim. Parabéns ao diretor Emílio Gallo e a todos os que trabalharam para que esse documentário viesse a público. Simples e certeiro.
Fechando bem a noite, representantes da CPT lançaram, em Belo Horizonte, o Livro Conflitos no Campo Brasil 2010. Os dados estão aí para mostrar como a luta pelo território, invadido pelas multinacionais e pela velha oligarquia agrária, é sempre cruel para com os pobres da terra.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 29 de junho de 2011
terça-feira, 28 de junho de 2011
Artigo/Denúncia - Professor Virgilio Mattos
A LUTA DOS PROFESSORES MUNICIPAIS DE IPATINGA É A LUTA DE TODOS NÓS
Virgílio de Mattos
Denunciem, por favor.
Assim começava a mensagem que recebi de um dos professores municipais de Ipatinga, na tarde de hoje.
Fez-me lembrar e voltar no tempo em que os pedidos de denúncias das condições de presos políticos – só viria a saber que todo preso é preso político algum tempo depois – vinham também em conta-gotas, em homeopáticas doses, em pedaços de papel com letra miúda, entre susto e espanto – que são coisas absolutamente distintas se você está dentro ou fora do cárcere – eram contrabandeados para o mundo todo.
A voz de Liliana Polena irradiava “QUI RÁDIO TIRANA”, como depois Franco Battiato colocou no sucesso Voglio vederti danzare, mas isso eram outros tempos e outros os pedidos que começavam com o pedido entre o desesperado e o esperançoso.
Denunciem, por favor.
Pensamos, aquele que me envia a denúncia e eu, que vivemos em tempos de liberdade democrática, mas como ter certeza se em Ipatinga, a próxima e próspera cidade do Vale do Aço, os professores municipais estão em greve desde o dia 08 de junho, reivindicando nada mais do que a imediata implantação do PSPN (Piso Nacional para os Professores).
Como último recurso, e às vezes são obrigados os trabalhadores a tomarem desde logo os últimos recursos como instrumento de luta, na última 5ª feira, segue a denúncia, “os professores tomaram a ante-sala do prefeito e lá se encontram desde então. De sexta para sábado, o prefeito mandou que o ar condicionado fosse ligado ao máximo e não permite que se chegue àqueles que lá se encontram cobertores e colchonetes”.
Prossegue a informação:
“Estamos nesta luta desde 2008, mas conseguimos que o prefeito assinasse um acordo e o transformamos em lei municipal no ano passado, mas este Governo tem descumprido sistematicamente esta e outras leis municipais.
Precisamos que isto se torne de conhecimento nacional.
Agradeço a solidariedade na divulgação.”
Faço a minha parte, J.G., enquanto ouço vozes. Nada grave, nada grave, são as vozes que crescem e que dizem: TRABALHADOR, ESCUTA, SUA LUTA É A NOSSA LUTA!
Ou mais comedidamente dizer com Rodolfo Walsh: Reproduza esta informação. Faça-a circular por todos os meios a seu alcance: a mão, por mimeógrafo, oralmente. Mande cópias a seus amigos: nove a cada dez estão esperando. Milhões querem ser informados. O terror se baseia na incomunicabilidade. Rompa esse isolamento. Volte a sentir a satisfação moral de um ato de liberdade. Derrote o terror. Faça circular esta informação.
Virgílio de Mattos
Denunciem, por favor.
Assim começava a mensagem que recebi de um dos professores municipais de Ipatinga, na tarde de hoje.
Fez-me lembrar e voltar no tempo em que os pedidos de denúncias das condições de presos políticos – só viria a saber que todo preso é preso político algum tempo depois – vinham também em conta-gotas, em homeopáticas doses, em pedaços de papel com letra miúda, entre susto e espanto – que são coisas absolutamente distintas se você está dentro ou fora do cárcere – eram contrabandeados para o mundo todo.
A voz de Liliana Polena irradiava “QUI RÁDIO TIRANA”, como depois Franco Battiato colocou no sucesso Voglio vederti danzare, mas isso eram outros tempos e outros os pedidos que começavam com o pedido entre o desesperado e o esperançoso.
Denunciem, por favor.
Pensamos, aquele que me envia a denúncia e eu, que vivemos em tempos de liberdade democrática, mas como ter certeza se em Ipatinga, a próxima e próspera cidade do Vale do Aço, os professores municipais estão em greve desde o dia 08 de junho, reivindicando nada mais do que a imediata implantação do PSPN (Piso Nacional para os Professores).
Como último recurso, e às vezes são obrigados os trabalhadores a tomarem desde logo os últimos recursos como instrumento de luta, na última 5ª feira, segue a denúncia, “os professores tomaram a ante-sala do prefeito e lá se encontram desde então. De sexta para sábado, o prefeito mandou que o ar condicionado fosse ligado ao máximo e não permite que se chegue àqueles que lá se encontram cobertores e colchonetes”.
Prossegue a informação:
“Estamos nesta luta desde 2008, mas conseguimos que o prefeito assinasse um acordo e o transformamos em lei municipal no ano passado, mas este Governo tem descumprido sistematicamente esta e outras leis municipais.
Precisamos que isto se torne de conhecimento nacional.
Agradeço a solidariedade na divulgação.”
Faço a minha parte, J.G., enquanto ouço vozes. Nada grave, nada grave, são as vozes que crescem e que dizem: TRABALHADOR, ESCUTA, SUA LUTA É A NOSSA LUTA!
Ou mais comedidamente dizer com Rodolfo Walsh: Reproduza esta informação. Faça-a circular por todos os meios a seu alcance: a mão, por mimeógrafo, oralmente. Mande cópias a seus amigos: nove a cada dez estão esperando. Milhões querem ser informados. O terror se baseia na incomunicabilidade. Rompa esse isolamento. Volte a sentir a satisfação moral de um ato de liberdade. Derrote o terror. Faça circular esta informação.
domingo, 26 de junho de 2011
Concentração de terras, uma injustiça que se perpetua no Brasil.
Delze dos Santos Laureano
Macunaíma passou mais de seis anos sem falar. Quando o incitavam, exclamava: — Ai! Que preguiça!... (Mário de Andrade).
Também fico assim, com preguiça, quando tenho de explicar de novo a mesma coisa. Todavia, é recorrente! Quando ouvimos a notícia da ocupação de terras por famílias que lutam por moradia ou trabalho, vem a mesma ladainha do senso comum: “O motivo é justo, o que não podemos apoiar é a violência, é a invasão de terra que já tem dono!”
Ora, violência são a falta de informação e o preconceito. A grande mídia criminaliza os movimentos sociais que lutam pela posse da terra e os trabalhadores desinformados repetem o discurso das elites. Invasores são os grandes proprietários, rurais e urbanos, pois todo latifúndio resultou de privilégios obtidos junto ao poder do Estado ou da omissão dos governantes em exigir o cumprimento das leis, inclusive o pagamento dos impostos. Na melhor das hipóteses essas terras são fruto de herança, cuja transmissão ocorre com insignificante tributação, o que perpetua a desigualdade entre as pessoas e encobre os favorecimentos anteriores. Desafio alguém que me prove ter comprado e mantido um latifúndio nos moldes legais com dinheiro ganho honestamente e sem o favorecimento público.
Precisamos conhecer melhor a história de ocupação do nosso território e a forma como as mesmas elites controlam as propriedades no nosso país. Assim vamos entender a razão porque, mesmo sendo o Brasil um país de dimensão continental, os pobres não têm acesso a terra para trabalhar e morar.
A história da ocupação do nosso território determinou o modelo de concentração das terras existentes. Somente em 1850, já no Segundo Império, foi que tivemos a primeira lei brasileira a tratar do direito de propriedade. A conseqüência disso foi o cerco da terra que, infelizmente, passou a ser adquirida somente mediante compra. Se por um lado essa Lei 601/1850 exigiu a medição e o registro das terras - decisão justa -, por outro impediu aos trabalhadores o acesso à posse, especialmente os ex-escravos.
A exigência da medição e registro foi sistematicamente ignorada pelos grandes proprietários e governantes. Porém, isto tem uma conseqüência legal. Quem não registrou as outorgas de Sesmarias caiu em comisso, ou seja, perdeu o direito sobre elas que passaram a ser terras devolutas, que são terras públicas, destinadas, nos termos da Constituição de 1988, para a política agrícola e de reforma agrária.
Mas, vamos imaginar que o proprietário tenha medido e registrado essas terras. Assim, toda a extensão, desde a confirmação do registro, deveria estar cultivada ou aplicada a alguma atividade agrária, cumprindo o que determina a lei. O cumprimento da função social é uma exigência legal existente desde a promulgação do Estatuto da Terra, Lei 4.504/64. Nos dias atuais, a Constituição Federal, no Art. 186, diz que todo imóvel deve, simultaneamente, cumprir as obrigações legais quanto ao uso nos aspectos econômico, ambiental e social. A sanção para o descumprimento dessas obrigações é a desapropriação do imóvel para fins de reforma agrária.
Necessário aqui ressaltar que mesmo a exigência de cumprimento do aspecto econômico, que é a produtividade do imóvel, tem sido sistematicamente negligenciada pelo Governo Federal, sob pressão da bancada ruralista no Congresso Nacional. Os índices utilizados são ainda da década de 1970, o que permite a manutenção de atividades de baixa produtividade como é o caso da pecuária de extensão, uma das mais atrasadas de exploração agropecuária do país por ocupar extensas áreas, causando sérios danos ambientais e exercendo enorme pressão sobre as áreas de floresta nativa para a abertura de novas pastagens. Além de tudo isso gera poucos postos de trabalho.
Os demais incisos do Art. 186 também são abusivamente desrespeitados. Inúmeros são os conflitos agrários que resultam na morte de trabalhadores. Os criadores de gado e as empresas do agronegócio fustigam as comunidades tradicionais, como ribeirinhos, extrativistas, indígenas e quilombolas. A degradação ambiental e o trabalho escravo são sistematicamente ignorados pelo Poder Judiciário - como motivo para a desapropriação -, que normalmente sacraliza o direito de propriedade ou a produtividade do imóvel. Esvazia-se deste modo os demais aspectos da função social da terra.
É bom refrescar na memória também que imensas áreas foram doadas às empresas nas décadas de 1960 a 1980. Os militares, utilizando-se do mecanismo de renúncia fiscal, incentivaram grandes empresas estrangeiras a aplicarem no desenvolvimento rural para contrapor à reforma agrária. O desenvolvimentismo fez com que empresas como a Volkswagen, uma fabricante de automóveis, passasse a ser dona de grandes áreas na Amazônia. Em 1988, o legislador constituinte estabeleceu, no Art. 51 do ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias -, um prazo de três anos para a revisão de todas as alienações e concessões de terras públicas acima de três mil hectares realizadas naquele período. Contudo, isso nunca foi feito.
Estudos mostram ter ocorrido durante a ditadura militar o maior êxodo rural já registrado, quando mais de 40% da população rural foi expulsa do campo para as periferias das grandes cidades. A propriedade da terra ficou ainda mais concentrada, enquanto uma massa de trabalhadores sem qualificação para o trabalho urbano passou a disputar um posto de trabalho e moradia nas grandes cidades.
Na teoria jurídica, a propriedade compõe-se de dois aspectos, um subjetivo que é o registro do imóvel no Cartório, e o outro objetivo que é fato do uso. Este, comprovado por meio do cumprimento da função social. O critério objetivo é o modo de o proprietário retribuir à sociedade o benefício legal que lhe permite o uso exclusivo do bem. Juridicamente, então, um imóvel que não cumpre a função social está vazio. Ninguém tem a sua posse. Como conseqüência lógica não pode o Poder Judiciário, apenas com base no registro, mandar reintegrar na posse quem está descumprindo a lei. Por estas razões não podemos dizer que são invasores os trabalhadores que lutam por esse direito. Invasores são aqueles que possuindo apenas o registro intitulam-se legítimos proprietários e ainda por cima, descumprindo a função social, reivindicam em juízo a proteção possessória.
Até quando vamos fechar os olhos para a concentração de terras, essa que é uma das maiores fontes de injustiça social no Brasil? Temos de dar um basta a essa realidade que se perpetua desde a colônia. Precisamos apoiar a luta pela democratização da terra. Precisamos defender e apoiar os que lutam pelo direito fundamental da moradia. Precisamos lutar ao lado dos camponeses que produzem os alimentos que vêm para a nossa mesa, protegendo o meio ambiente e fazendo a justiça que traz a paz social.
Nova Lima, MG, Brasil, 25 de junho de 2011.
Macunaíma passou mais de seis anos sem falar. Quando o incitavam, exclamava: — Ai! Que preguiça!... (Mário de Andrade).
Também fico assim, com preguiça, quando tenho de explicar de novo a mesma coisa. Todavia, é recorrente! Quando ouvimos a notícia da ocupação de terras por famílias que lutam por moradia ou trabalho, vem a mesma ladainha do senso comum: “O motivo é justo, o que não podemos apoiar é a violência, é a invasão de terra que já tem dono!”
Ora, violência são a falta de informação e o preconceito. A grande mídia criminaliza os movimentos sociais que lutam pela posse da terra e os trabalhadores desinformados repetem o discurso das elites. Invasores são os grandes proprietários, rurais e urbanos, pois todo latifúndio resultou de privilégios obtidos junto ao poder do Estado ou da omissão dos governantes em exigir o cumprimento das leis, inclusive o pagamento dos impostos. Na melhor das hipóteses essas terras são fruto de herança, cuja transmissão ocorre com insignificante tributação, o que perpetua a desigualdade entre as pessoas e encobre os favorecimentos anteriores. Desafio alguém que me prove ter comprado e mantido um latifúndio nos moldes legais com dinheiro ganho honestamente e sem o favorecimento público.
Precisamos conhecer melhor a história de ocupação do nosso território e a forma como as mesmas elites controlam as propriedades no nosso país. Assim vamos entender a razão porque, mesmo sendo o Brasil um país de dimensão continental, os pobres não têm acesso a terra para trabalhar e morar.
A história da ocupação do nosso território determinou o modelo de concentração das terras existentes. Somente em 1850, já no Segundo Império, foi que tivemos a primeira lei brasileira a tratar do direito de propriedade. A conseqüência disso foi o cerco da terra que, infelizmente, passou a ser adquirida somente mediante compra. Se por um lado essa Lei 601/1850 exigiu a medição e o registro das terras - decisão justa -, por outro impediu aos trabalhadores o acesso à posse, especialmente os ex-escravos.
A exigência da medição e registro foi sistematicamente ignorada pelos grandes proprietários e governantes. Porém, isto tem uma conseqüência legal. Quem não registrou as outorgas de Sesmarias caiu em comisso, ou seja, perdeu o direito sobre elas que passaram a ser terras devolutas, que são terras públicas, destinadas, nos termos da Constituição de 1988, para a política agrícola e de reforma agrária.
Mas, vamos imaginar que o proprietário tenha medido e registrado essas terras. Assim, toda a extensão, desde a confirmação do registro, deveria estar cultivada ou aplicada a alguma atividade agrária, cumprindo o que determina a lei. O cumprimento da função social é uma exigência legal existente desde a promulgação do Estatuto da Terra, Lei 4.504/64. Nos dias atuais, a Constituição Federal, no Art. 186, diz que todo imóvel deve, simultaneamente, cumprir as obrigações legais quanto ao uso nos aspectos econômico, ambiental e social. A sanção para o descumprimento dessas obrigações é a desapropriação do imóvel para fins de reforma agrária.
Necessário aqui ressaltar que mesmo a exigência de cumprimento do aspecto econômico, que é a produtividade do imóvel, tem sido sistematicamente negligenciada pelo Governo Federal, sob pressão da bancada ruralista no Congresso Nacional. Os índices utilizados são ainda da década de 1970, o que permite a manutenção de atividades de baixa produtividade como é o caso da pecuária de extensão, uma das mais atrasadas de exploração agropecuária do país por ocupar extensas áreas, causando sérios danos ambientais e exercendo enorme pressão sobre as áreas de floresta nativa para a abertura de novas pastagens. Além de tudo isso gera poucos postos de trabalho.
Os demais incisos do Art. 186 também são abusivamente desrespeitados. Inúmeros são os conflitos agrários que resultam na morte de trabalhadores. Os criadores de gado e as empresas do agronegócio fustigam as comunidades tradicionais, como ribeirinhos, extrativistas, indígenas e quilombolas. A degradação ambiental e o trabalho escravo são sistematicamente ignorados pelo Poder Judiciário - como motivo para a desapropriação -, que normalmente sacraliza o direito de propriedade ou a produtividade do imóvel. Esvazia-se deste modo os demais aspectos da função social da terra.
É bom refrescar na memória também que imensas áreas foram doadas às empresas nas décadas de 1960 a 1980. Os militares, utilizando-se do mecanismo de renúncia fiscal, incentivaram grandes empresas estrangeiras a aplicarem no desenvolvimento rural para contrapor à reforma agrária. O desenvolvimentismo fez com que empresas como a Volkswagen, uma fabricante de automóveis, passasse a ser dona de grandes áreas na Amazônia. Em 1988, o legislador constituinte estabeleceu, no Art. 51 do ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias -, um prazo de três anos para a revisão de todas as alienações e concessões de terras públicas acima de três mil hectares realizadas naquele período. Contudo, isso nunca foi feito.
Estudos mostram ter ocorrido durante a ditadura militar o maior êxodo rural já registrado, quando mais de 40% da população rural foi expulsa do campo para as periferias das grandes cidades. A propriedade da terra ficou ainda mais concentrada, enquanto uma massa de trabalhadores sem qualificação para o trabalho urbano passou a disputar um posto de trabalho e moradia nas grandes cidades.
Na teoria jurídica, a propriedade compõe-se de dois aspectos, um subjetivo que é o registro do imóvel no Cartório, e o outro objetivo que é fato do uso. Este, comprovado por meio do cumprimento da função social. O critério objetivo é o modo de o proprietário retribuir à sociedade o benefício legal que lhe permite o uso exclusivo do bem. Juridicamente, então, um imóvel que não cumpre a função social está vazio. Ninguém tem a sua posse. Como conseqüência lógica não pode o Poder Judiciário, apenas com base no registro, mandar reintegrar na posse quem está descumprindo a lei. Por estas razões não podemos dizer que são invasores os trabalhadores que lutam por esse direito. Invasores são aqueles que possuindo apenas o registro intitulam-se legítimos proprietários e ainda por cima, descumprindo a função social, reivindicam em juízo a proteção possessória.
Até quando vamos fechar os olhos para a concentração de terras, essa que é uma das maiores fontes de injustiça social no Brasil? Temos de dar um basta a essa realidade que se perpetua desde a colônia. Precisamos apoiar a luta pela democratização da terra. Precisamos defender e apoiar os que lutam pelo direito fundamental da moradia. Precisamos lutar ao lado dos camponeses que produzem os alimentos que vêm para a nossa mesa, protegendo o meio ambiente e fazendo a justiça que traz a paz social.
Nova Lima, MG, Brasil, 25 de junho de 2011.
segunda-feira, 20 de junho de 2011
A luta dos italianos contra a privatização da água - Carta de Silvia Parodi de Gênova
Queridos amig@s brasileir@s,
desculpem minha ausência, mas nessa ultima época fiquei muito ocupada com uma luta que foi muito grande aqui na Itália: a luta pela agua publica. Vou tentar explicar com um texto para vocês o que aconteceu nos últimos meses, que foi realmente extraordinario!
Há alguns anos o nosso governo super corrupto de Berlusconi fez uma lei para privatizar todos os serviços hídricos, de transporte publico local e de gestão do lixo. Essa lei continua o percurso que os governos tanto de esquerda quanto de direita levam para a frente há muito anos, querendo privatizar os serviços públicos.
Então o ano passado, em cada cidade começou uma mobilização popular e recolhemos assinaturas para pedir um referendum (plebiscito popular) contra essa lei e contra a mercantilização da agua. Em 3 meses recolhemos mais de 1.400.000 assinaturas, o numero mais alto na historia da Itália, e finalmente a semana passada o povo todo foi chamado a votar para decidir sobre privatização da agua, sobre energia nuclear, e sobre privilegio do chefe de governo e ministros em poder não ser chamados nas aulas de tribunal para julgamentos.
Toda essa luta foi levada a frente por conta dos movimentos sociais, dos voluntários da sociedade civil, o Fórum dos movimentos pela agua cresceu muito e jà tem comité de agua em cada cidade da Itália. Os partidos políticos nos obstaculavam ou gozavam de nos. Até o maior partido da esquerda (que já levou para a frente a privatização nos anos passado) não ajudou, mas sò falava contra de nos.
A mídia, escrava do poder, nunca falava dos assuntos, tivemos que não se organizar e fazer nossa campanha de informação através de internet, nas ruas, nos povoados, com encontros, eventos, teatro, foi um esforço imenso, mas que nos fez encontrar as pessoas de uma maneira direta, pessoal. Os voluntários cresciam de numero, no ultimo mês a mobilização crescia e cada um fazia sua parte para repassar as informações.
Vocês tem que saber que aqui na Itália o referendum tem validade somente se vai votar mais de 50% da população e que aqui na Itália votar não é obrigação. Nos últimos 16 anos nenhum referendum tinha conseguido chegar a ser valido, também porque a pululação esta muito enjoada da politica e muitas pessoas não votam mais.
Mas vamos voltar a o que aconteceu no ultimo mês, porque para nos isso tem o sabor de um milagre. A sociedade civil, que parecia adormecida, começou a se mobilizar cada dia mais, em favor da agua publica, contra a energia nuclear e para una justiça igual para todos.
Se mobilizaram os jovens que usam internet, todos se unimos, pessoas de diferentes ideas politicas, de todos os lados e experiencias, unidos, porque a agua não tem color, a agua é vida para todos.
Um mês antes das votações começou se perceber que o consenso popular estava crescendo e alguns partidos mudaram suas falações, e começaram apoiar a luta. Essa mudança foi mais uma vez o tentativo da mala politica de se apropriar de uma luta que estava se prospectando vitoriosa.
Mesmo assim nos estávamos com medo de não conseguir chegar a 50%, porque como já disse, a mídia e o governo estavam todos contra nos, fazendo um escandaloso boicote da informação e convidando o povo para não ir votar.
Mas chegou o dia que vai entrar na historia do nosso país. Dia 13 e 14 de junho a população começou encher as urnas já de manha cedo, jovens e velhinhos, famílias, até doentes e estudantes de outras cidades que pediam para votar, maior parte da igreja apoiou a luta, missionários fizeram vigília de oração, papa Bendito falou contra energia nuclear, os artistas faziam shows gratuitos para mobilizar, os bares prometiam bebidas para quem ia fazer seu dever de votar, cada um inventava uma coisa para convencer os outros.
E afinal vencemos: 57% dos italianos foram as urnas , 95% deles votou para cancelar as leis injustas do governo. A noite as praças se encheram de pessoas fazendo festa, pela primeira vez cheias de jovens animados, sorrisos, abraços, a sensação que as coisas a partir de hoje vão mudar para melhor.
Foi maravilhoso descobrir que não precisamos mais da mídia tradicional, a liberdade de internet substituiu a escravidão da televisão, foi maravilhoso descobrir que os jovens não estãoo todos anestesiados e desinteressados, o enjôo não é devido à politica, mas aos políticos! Quando a politica é feita pelo povo, falando de assuntos concretos como agua, saúde, segurança, o povo entende e se mobiliza.
Tem um vento novo soprando na Itália, um ar limpo e fresco como uma cachoeira de agua transparente.
Nestes anos ganhamos força com as lutas vitoriosas de alguns povos da América Latina, hoje estamos felizes de oferecer nossa vitoria a todos os povos que ainda lutam pelo direito à agua. A agua é nossa mãe, nessa irmandade avançamos juntos para um mundo melhor.
Abraços
Silvia Parodi - comité “Agua Publica” de Genova – Italia.
desculpem minha ausência, mas nessa ultima época fiquei muito ocupada com uma luta que foi muito grande aqui na Itália: a luta pela agua publica. Vou tentar explicar com um texto para vocês o que aconteceu nos últimos meses, que foi realmente extraordinario!
Há alguns anos o nosso governo super corrupto de Berlusconi fez uma lei para privatizar todos os serviços hídricos, de transporte publico local e de gestão do lixo. Essa lei continua o percurso que os governos tanto de esquerda quanto de direita levam para a frente há muito anos, querendo privatizar os serviços públicos.
Então o ano passado, em cada cidade começou uma mobilização popular e recolhemos assinaturas para pedir um referendum (plebiscito popular) contra essa lei e contra a mercantilização da agua. Em 3 meses recolhemos mais de 1.400.000 assinaturas, o numero mais alto na historia da Itália, e finalmente a semana passada o povo todo foi chamado a votar para decidir sobre privatização da agua, sobre energia nuclear, e sobre privilegio do chefe de governo e ministros em poder não ser chamados nas aulas de tribunal para julgamentos.
Toda essa luta foi levada a frente por conta dos movimentos sociais, dos voluntários da sociedade civil, o Fórum dos movimentos pela agua cresceu muito e jà tem comité de agua em cada cidade da Itália. Os partidos políticos nos obstaculavam ou gozavam de nos. Até o maior partido da esquerda (que já levou para a frente a privatização nos anos passado) não ajudou, mas sò falava contra de nos.
A mídia, escrava do poder, nunca falava dos assuntos, tivemos que não se organizar e fazer nossa campanha de informação através de internet, nas ruas, nos povoados, com encontros, eventos, teatro, foi um esforço imenso, mas que nos fez encontrar as pessoas de uma maneira direta, pessoal. Os voluntários cresciam de numero, no ultimo mês a mobilização crescia e cada um fazia sua parte para repassar as informações.
Vocês tem que saber que aqui na Itália o referendum tem validade somente se vai votar mais de 50% da população e que aqui na Itália votar não é obrigação. Nos últimos 16 anos nenhum referendum tinha conseguido chegar a ser valido, também porque a pululação esta muito enjoada da politica e muitas pessoas não votam mais.
Mas vamos voltar a o que aconteceu no ultimo mês, porque para nos isso tem o sabor de um milagre. A sociedade civil, que parecia adormecida, começou a se mobilizar cada dia mais, em favor da agua publica, contra a energia nuclear e para una justiça igual para todos.
Se mobilizaram os jovens que usam internet, todos se unimos, pessoas de diferentes ideas politicas, de todos os lados e experiencias, unidos, porque a agua não tem color, a agua é vida para todos.
Um mês antes das votações começou se perceber que o consenso popular estava crescendo e alguns partidos mudaram suas falações, e começaram apoiar a luta. Essa mudança foi mais uma vez o tentativo da mala politica de se apropriar de uma luta que estava se prospectando vitoriosa.
Mesmo assim nos estávamos com medo de não conseguir chegar a 50%, porque como já disse, a mídia e o governo estavam todos contra nos, fazendo um escandaloso boicote da informação e convidando o povo para não ir votar.
Mas chegou o dia que vai entrar na historia do nosso país. Dia 13 e 14 de junho a população começou encher as urnas já de manha cedo, jovens e velhinhos, famílias, até doentes e estudantes de outras cidades que pediam para votar, maior parte da igreja apoiou a luta, missionários fizeram vigília de oração, papa Bendito falou contra energia nuclear, os artistas faziam shows gratuitos para mobilizar, os bares prometiam bebidas para quem ia fazer seu dever de votar, cada um inventava uma coisa para convencer os outros.
E afinal vencemos: 57% dos italianos foram as urnas , 95% deles votou para cancelar as leis injustas do governo. A noite as praças se encheram de pessoas fazendo festa, pela primeira vez cheias de jovens animados, sorrisos, abraços, a sensação que as coisas a partir de hoje vão mudar para melhor.
Foi maravilhoso descobrir que não precisamos mais da mídia tradicional, a liberdade de internet substituiu a escravidão da televisão, foi maravilhoso descobrir que os jovens não estãoo todos anestesiados e desinteressados, o enjôo não é devido à politica, mas aos políticos! Quando a politica é feita pelo povo, falando de assuntos concretos como agua, saúde, segurança, o povo entende e se mobiliza.
Tem um vento novo soprando na Itália, um ar limpo e fresco como uma cachoeira de agua transparente.
Nestes anos ganhamos força com as lutas vitoriosas de alguns povos da América Latina, hoje estamos felizes de oferecer nossa vitoria a todos os povos que ainda lutam pelo direito à agua. A agua é nossa mãe, nessa irmandade avançamos juntos para um mundo melhor.
Abraços
Silvia Parodi - comité “Agua Publica” de Genova – Italia.
domingo, 19 de junho de 2011
Artigo - Preço de Sangue
Preço de Sangue
Delze dos Santos Laureano
Parte do que foi a paixão e ressurreição de Jesus Cristo está no Evangelho de Mateus, capítulo 27. Conta o evangelista que, desde a manhã, todos os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo convocaram o Sinédrio contra Jesus a fim de o condenarem à morte. Depois de amarrarem Jesus entregaram-no ao governador Pilatos.
Detenho-me especialmente nos versículos de 3 a 7. Judas, chamado no texto de traidor, ao ver que Jesus fora condenado, sentiu remorso, e foi devolver as trinta moedas de prata aos chefes dos sacerdotes e anciãos dizendo: “Pequei, entregando à morte sangue inocente.” Eles responderam: “E o que nós temos com isso? O problema é seu.” Judas jogou as moedas no Templo e saiu, indo enforcar-se. Recolhendo as moedas, os chefes dos sacerdotes disseram: “É contra a Lei colocá-las no tesouro do Templo, porque é preço de sangue.” Então discutiram em conselho e com o dinheiro compraram o Campo do Oleiro, para aí fazer o cemitério dos estrangeiros.
O texto é da década de 80 do primeiro século da era cristã. Lá se vão quase 2.000 anos. Fico aqui pensando com os meus botões. Sangue inocente ainda mancha as moedas recolhidas pelos chefes do poder. O uso do dinheiro sujo é amenizado, na Bíblia, para a compra da terra de cemitério para estrangeiros, hoje, para projetos socioculturais e de educação ambiental. Contudo, são os que detêm o poder os responsáveis pelo sangue nas moedas e os mesmos que decidem acerca do seu uso.
Michel Chossudovsky, pesquisador canadense, no livro “A Globalização da Pobreza”, demonstrou com clareza como a riqueza mundial é canalizada para os mesmos grupos econômicos internacionais – Clube de Londres e Clube de Paris -, protegidos pelas políticas do FMI - Fundo Monetário Internacional – e do BIRD – Banco Mundial. Os recursos originários dos países pobres, mesmo quando vêm da exploração sexual, do comércio ilegal de entorpecentes, da exploração criminosa dos recursos naturais nos territórios das comunidades tradicionais servem para honrar os contratos internacionais, mesmo causando tanto sofrimento e a morte do planeta.
Não é diferente com a nossa riqueza interna no Brasil. O capitalismo hegemônico tornou-se mais forte (dogmático) que uma religião. Tudo pode ser debatido politicamente, menos as velhas receitas da teoria econômica conservadora. O Estado prioriza ações para o crescimento econômico – PAC - e para a realização dos megaeventos como a Copa de 2014, transferindo para as entidades da sociedade civil – especialmente as ONGs – grande parte da responsabilidade dos serviços sociais que precisam amortecer os efeitos perversos do sistema econômico. E assim, por detrás dos recursos que financiam os projetos sociais estão as mesmas empresas multinacionais causadoras dos danos: mineradoras, grandes construtoras, bancos, empresas do agronegócio. Elas que estão presentes no mundo inteiro, elegem nos países os seus representantes e mantêm suas sedes nas economias centrais do planeta. Toda grande empresa tem um braço social: instituto, ONG, fundação. Afinal, empresa que não mantém uma fachada de responsabilidade social e de sustentabilidade ambiental fica feia no retrato, perde clientes e faturamento nos países desenvolvidos.
Mas as moedas de sangue não vêm somente da iniciativa privada, vêm também do Estado. Originam-se dos orçamentos públicos, moeda de troca nas reeleições. Quem pode incluir obras no orçamento, quem pode aprovar renúncias fiscais (em nome da geração de empregos e renda), ou dar destinação legal (como é exemplo a Lei Rouanet) às receitas públicas, acaba se beneficiando desse lugar privilegiado, impedindo a renovação da representação política democrática pela via eleitoral. Manipulando os recursos públicos, subtraídos da população pobre (espoliada com a maior carga tributária do mundo e servida com os piores meios de transporte, com educação pública de fazer vergonha, com moradia inapropriada) favorecem as mesmas elites que se regozijam com as benesses do poder, deliberando com exclusividade acerca das riquezas nacionais que deveriam ser bens de uso comum do povo, como terra, água, florestas, biodiversidade.
Nós, meras peças dessa engrenagem, individualmente tentamos superar limites. Às vezes acreditamos no sucesso pessoal. Fazemos um esforço hercúleo para entender as tramas do mercado que tanto exige de nós. Outras vezes caímos na armadilha do moralismo, do arrependimento, talvez resquício de uma tradição judaico/cristã. Imaginamos que as nossas ações pessoais (como fechar torneiras, tomar banhos frios e rápidos, ou transformar lixo em artesanato) são as saídas para se resolver as mazelas provocadas por esse sistema que ignora a vida, visando somente ao lucro.
Em meio ao cansaço ou ao arrependimento ouvimos a voz dos senhores do Sinédrio dizendo. “O que nós temos com isso? Não reclamem das tarifas altas, do alto custo dos pedágios, dos serviços públicos de água, de energia ou de comunicação. Não lamentem as mazelas sociais e a violência.” Como Pilatos, lavam as mãos dizendo: “Apenas aprovamos os projetos que vocês apresentam. O Estado não dispõe de recursos. Precisamos fazer parcerias com o setor empresarial para sermos eficientes.” Outros senhores, os juízes, quando reclamamos que somente os pobres ficam nas cadeias, repetem em coro: “O que nós temos com isso? O problema é de vocês. Não são os seus representantes que fazem as leis? Estamos apenas cumprindo o que a sociedade manda.” Assim, condenam impiedosamente à prisão os acusados dos pequenos delitos (contra o patrimônio), retirando das famílias pobres a melhor força de trabalho, perpetuando o círculo da marginalidade. Já os governadores dizem: “Nós não condenamos ninguém. São os juízes que condenam. Para cumprir as ordens judiciais e a lei precisamos construir mais penitenciárias, precisamos comprar mais viaturas de polícia. Precisamos por mais policiais nas ruas.”
Judas, segundo o relato bíblico, iludido pelos donos do poder, trai os companheiros e se sente culpado. Arrependido, devolve ao Templo as moedas sujas de sangue e, envergonhado, suicida-se. Já os donos do poder político, ontem e hoje, não se arrependem nunca. Arrogantes, determinam os fatos que mancham de sangue as moedas, para depois decidir “moralmente” o que fazer com elas.
Na nossa cultura ocidental, imprescindível interpretar de forma libertadora a Bíblia para compreender a lógica do sistema político. Somente assim nos damos conta de que vivemos e legitimamos o mesmo sistema de sempre. A história apenas se repete, como magistralmente ensinou Marx: "a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Quem não tem as mãos sujas de sangue que atire a primeira pedra. Quem tem ouvidos, ouça!
Nova Lima (MG) Brasil, 19 de junho de 2011.
Delze dos Santos Laureano é advogada, professora universitária de Direito Agrário, mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG, doutoranda em Direito Público Internacional pela PUC/Minas.
E-mail: delzesantos@hotmail.com. www.delzesantoslaureano.blogspot.com
Delze dos Santos Laureano
Parte do que foi a paixão e ressurreição de Jesus Cristo está no Evangelho de Mateus, capítulo 27. Conta o evangelista que, desde a manhã, todos os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo convocaram o Sinédrio contra Jesus a fim de o condenarem à morte. Depois de amarrarem Jesus entregaram-no ao governador Pilatos.
Detenho-me especialmente nos versículos de 3 a 7. Judas, chamado no texto de traidor, ao ver que Jesus fora condenado, sentiu remorso, e foi devolver as trinta moedas de prata aos chefes dos sacerdotes e anciãos dizendo: “Pequei, entregando à morte sangue inocente.” Eles responderam: “E o que nós temos com isso? O problema é seu.” Judas jogou as moedas no Templo e saiu, indo enforcar-se. Recolhendo as moedas, os chefes dos sacerdotes disseram: “É contra a Lei colocá-las no tesouro do Templo, porque é preço de sangue.” Então discutiram em conselho e com o dinheiro compraram o Campo do Oleiro, para aí fazer o cemitério dos estrangeiros.
O texto é da década de 80 do primeiro século da era cristã. Lá se vão quase 2.000 anos. Fico aqui pensando com os meus botões. Sangue inocente ainda mancha as moedas recolhidas pelos chefes do poder. O uso do dinheiro sujo é amenizado, na Bíblia, para a compra da terra de cemitério para estrangeiros, hoje, para projetos socioculturais e de educação ambiental. Contudo, são os que detêm o poder os responsáveis pelo sangue nas moedas e os mesmos que decidem acerca do seu uso.
Michel Chossudovsky, pesquisador canadense, no livro “A Globalização da Pobreza”, demonstrou com clareza como a riqueza mundial é canalizada para os mesmos grupos econômicos internacionais – Clube de Londres e Clube de Paris -, protegidos pelas políticas do FMI - Fundo Monetário Internacional – e do BIRD – Banco Mundial. Os recursos originários dos países pobres, mesmo quando vêm da exploração sexual, do comércio ilegal de entorpecentes, da exploração criminosa dos recursos naturais nos territórios das comunidades tradicionais servem para honrar os contratos internacionais, mesmo causando tanto sofrimento e a morte do planeta.
Não é diferente com a nossa riqueza interna no Brasil. O capitalismo hegemônico tornou-se mais forte (dogmático) que uma religião. Tudo pode ser debatido politicamente, menos as velhas receitas da teoria econômica conservadora. O Estado prioriza ações para o crescimento econômico – PAC - e para a realização dos megaeventos como a Copa de 2014, transferindo para as entidades da sociedade civil – especialmente as ONGs – grande parte da responsabilidade dos serviços sociais que precisam amortecer os efeitos perversos do sistema econômico. E assim, por detrás dos recursos que financiam os projetos sociais estão as mesmas empresas multinacionais causadoras dos danos: mineradoras, grandes construtoras, bancos, empresas do agronegócio. Elas que estão presentes no mundo inteiro, elegem nos países os seus representantes e mantêm suas sedes nas economias centrais do planeta. Toda grande empresa tem um braço social: instituto, ONG, fundação. Afinal, empresa que não mantém uma fachada de responsabilidade social e de sustentabilidade ambiental fica feia no retrato, perde clientes e faturamento nos países desenvolvidos.
Mas as moedas de sangue não vêm somente da iniciativa privada, vêm também do Estado. Originam-se dos orçamentos públicos, moeda de troca nas reeleições. Quem pode incluir obras no orçamento, quem pode aprovar renúncias fiscais (em nome da geração de empregos e renda), ou dar destinação legal (como é exemplo a Lei Rouanet) às receitas públicas, acaba se beneficiando desse lugar privilegiado, impedindo a renovação da representação política democrática pela via eleitoral. Manipulando os recursos públicos, subtraídos da população pobre (espoliada com a maior carga tributária do mundo e servida com os piores meios de transporte, com educação pública de fazer vergonha, com moradia inapropriada) favorecem as mesmas elites que se regozijam com as benesses do poder, deliberando com exclusividade acerca das riquezas nacionais que deveriam ser bens de uso comum do povo, como terra, água, florestas, biodiversidade.
Nós, meras peças dessa engrenagem, individualmente tentamos superar limites. Às vezes acreditamos no sucesso pessoal. Fazemos um esforço hercúleo para entender as tramas do mercado que tanto exige de nós. Outras vezes caímos na armadilha do moralismo, do arrependimento, talvez resquício de uma tradição judaico/cristã. Imaginamos que as nossas ações pessoais (como fechar torneiras, tomar banhos frios e rápidos, ou transformar lixo em artesanato) são as saídas para se resolver as mazelas provocadas por esse sistema que ignora a vida, visando somente ao lucro.
Em meio ao cansaço ou ao arrependimento ouvimos a voz dos senhores do Sinédrio dizendo. “O que nós temos com isso? Não reclamem das tarifas altas, do alto custo dos pedágios, dos serviços públicos de água, de energia ou de comunicação. Não lamentem as mazelas sociais e a violência.” Como Pilatos, lavam as mãos dizendo: “Apenas aprovamos os projetos que vocês apresentam. O Estado não dispõe de recursos. Precisamos fazer parcerias com o setor empresarial para sermos eficientes.” Outros senhores, os juízes, quando reclamamos que somente os pobres ficam nas cadeias, repetem em coro: “O que nós temos com isso? O problema é de vocês. Não são os seus representantes que fazem as leis? Estamos apenas cumprindo o que a sociedade manda.” Assim, condenam impiedosamente à prisão os acusados dos pequenos delitos (contra o patrimônio), retirando das famílias pobres a melhor força de trabalho, perpetuando o círculo da marginalidade. Já os governadores dizem: “Nós não condenamos ninguém. São os juízes que condenam. Para cumprir as ordens judiciais e a lei precisamos construir mais penitenciárias, precisamos comprar mais viaturas de polícia. Precisamos por mais policiais nas ruas.”
Judas, segundo o relato bíblico, iludido pelos donos do poder, trai os companheiros e se sente culpado. Arrependido, devolve ao Templo as moedas sujas de sangue e, envergonhado, suicida-se. Já os donos do poder político, ontem e hoje, não se arrependem nunca. Arrogantes, determinam os fatos que mancham de sangue as moedas, para depois decidir “moralmente” o que fazer com elas.
Na nossa cultura ocidental, imprescindível interpretar de forma libertadora a Bíblia para compreender a lógica do sistema político. Somente assim nos damos conta de que vivemos e legitimamos o mesmo sistema de sempre. A história apenas se repete, como magistralmente ensinou Marx: "a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Quem não tem as mãos sujas de sangue que atire a primeira pedra. Quem tem ouvidos, ouça!
Nova Lima (MG) Brasil, 19 de junho de 2011.
Delze dos Santos Laureano é advogada, professora universitária de Direito Agrário, mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG, doutoranda em Direito Público Internacional pela PUC/Minas.
E-mail: delzesantos@hotmail.com. www.delzesantoslaureano.blogspot.com
sexta-feira, 10 de junho de 2011
Boas relações são construídas.
Boas relações são construídas.
Hoje me lembrei de um filme: Parente é Serpente, do diretor Mário Monicelli, 1992. A sinopse é a seguinte: “Durante a tradicionalíssima festa de Natal da família Colapietro, a alegria é interrompida quando a matriarca declara que ela e seu marido estão muito velhos para ficarem sozinhos naquela enorme casa. Comunica, então, uma decisão irrevogável: vai pôr a casa à venda e morar com um dos filhos. Mas, é claro, nenhum deles quer dar abrigo aos pais, e o que era para ser apenas mais uma ceia de Natal acaba se tornando uma grande confusão, de conseqüências tragicômicas.”
Realmente às vezes dá vontade que família seja apenas retrato em cima da lareira. Mas será que esse problema é sempre com a nossa família? Acredito que não. Vejo como são difíceis as relações interpessoais. Freud tentou explicar: é o mal estar na civilização. De todas as dores a dor que mais dói é aquela causada pelo outro. Os ressentimentos ficam martelando, atazanando a nossa vida. Não conseguindo mudar tudo o que está ruim de uma só vez, o que podemos fazer é desencadear um processo novo capaz de mudar com o tempo aquela aura ruim que paira sobre as nossas cabeças. Ou seja, a velha receita: sair do círculo vicioso e entrar no círculo virtuoso.
O filme me veio, ao convidar, por telefone, uma pessoa não muito próxima para uma festa. Em lágrimas, ela aproveitou a oportunidade para me contar os problemas que está vivendo em família. Agradeceu o convite, mas disse que não conseguiria sair de casa. Contou-me que há algum tempo seu filho não fala mais com ela e que com esse rompimento outros problemas surgiram. Não está mais convivendo bem com o marido e nos finais de semana para ter um pouco de serenidade faz uso de medicamentos. Falou-me ainda do esforço que tem feito para manter os filhos nas escolas e a administração da pequena empresa que contribui para a renda familiar. Sente-se profundamente incompreendida.
Ouvi comovida e tive vontade de receitar para toda aquela família um remédio que o meu amigo terapeuta (de mentirinha) um dia me contou. Um mago foi procurado por uma jovem senhora que pedia a ele um veneno para matar a sogra, mas de forma que ninguém ficasse sabendo. É que, sendo o marido filho único, a sogra viúva tinha ido morar com eles. Ela afirmava odiar e ser odiada pela sogra e temendo que ela pudesse ainda viver muito tempo, destruindo o seu casamento, resolvera por fim àquela situação. O mago preparou a porção de veneno que consumiria a vida da sogra lentamente e sem deixar vestígios. Contudo recomendou: “Esse veneno só faz efeito se você ao tempo que adicioná-lo na comida da sua sogra tratá-la muito bem”. Deve preparar a comida para ela com carinho, sentar-se à mesa com ela para tomar as refeições, procurar passear com ela em lugares agradáveis, pedir a ela alguns favores, assim ninguém desconfiará e ela tomará toda a dose necessária para morrer.
Passados alguns dias a nora começou a ficar extremamente apreensiva sentindo que ao contrário do que pensava a sogra gostava dela e ambas sentiam prazer com a companhia da outra. Começou a ver na sogra uma amiga e mãe. Arrependida, foi novamente ao mago e, desesperada, pede a ele um antídoto para impedir que a sogra morresse envenenada, pois não poderia mais ser feliz sentindo-se culpada pela morte de uma pessoa tão boa. Então o mago lhe diz: “Não precisa antídoto. Eu não fiz veneno nenhum, apenas fiz você ver, pela sua própria experiência, que somente convivendo e tratando bem as pessoas é que elas nos amam e nos tratam bem.”
Preciso contar essa estória da carochinha para a pessoa que está angustiada achando que não é amada pela família. Devo contá-la também para quem não consegue perdoar os erros de parentes ou amigos e os pune com indiferença, chamando para si mais indiferença. Preciso colar essa mensagem na cabeceira da minha cama e ler todos os dias para me lembrar que relações boas são construídas, um pouquinho, todos os dias, seja na nossa casa, seja na nossa vida.
Nova Lima, MG, Brasil, 10 de junho de 2011.
Hoje me lembrei de um filme: Parente é Serpente, do diretor Mário Monicelli, 1992. A sinopse é a seguinte: “Durante a tradicionalíssima festa de Natal da família Colapietro, a alegria é interrompida quando a matriarca declara que ela e seu marido estão muito velhos para ficarem sozinhos naquela enorme casa. Comunica, então, uma decisão irrevogável: vai pôr a casa à venda e morar com um dos filhos. Mas, é claro, nenhum deles quer dar abrigo aos pais, e o que era para ser apenas mais uma ceia de Natal acaba se tornando uma grande confusão, de conseqüências tragicômicas.”
Realmente às vezes dá vontade que família seja apenas retrato em cima da lareira. Mas será que esse problema é sempre com a nossa família? Acredito que não. Vejo como são difíceis as relações interpessoais. Freud tentou explicar: é o mal estar na civilização. De todas as dores a dor que mais dói é aquela causada pelo outro. Os ressentimentos ficam martelando, atazanando a nossa vida. Não conseguindo mudar tudo o que está ruim de uma só vez, o que podemos fazer é desencadear um processo novo capaz de mudar com o tempo aquela aura ruim que paira sobre as nossas cabeças. Ou seja, a velha receita: sair do círculo vicioso e entrar no círculo virtuoso.
O filme me veio, ao convidar, por telefone, uma pessoa não muito próxima para uma festa. Em lágrimas, ela aproveitou a oportunidade para me contar os problemas que está vivendo em família. Agradeceu o convite, mas disse que não conseguiria sair de casa. Contou-me que há algum tempo seu filho não fala mais com ela e que com esse rompimento outros problemas surgiram. Não está mais convivendo bem com o marido e nos finais de semana para ter um pouco de serenidade faz uso de medicamentos. Falou-me ainda do esforço que tem feito para manter os filhos nas escolas e a administração da pequena empresa que contribui para a renda familiar. Sente-se profundamente incompreendida.
Ouvi comovida e tive vontade de receitar para toda aquela família um remédio que o meu amigo terapeuta (de mentirinha) um dia me contou. Um mago foi procurado por uma jovem senhora que pedia a ele um veneno para matar a sogra, mas de forma que ninguém ficasse sabendo. É que, sendo o marido filho único, a sogra viúva tinha ido morar com eles. Ela afirmava odiar e ser odiada pela sogra e temendo que ela pudesse ainda viver muito tempo, destruindo o seu casamento, resolvera por fim àquela situação. O mago preparou a porção de veneno que consumiria a vida da sogra lentamente e sem deixar vestígios. Contudo recomendou: “Esse veneno só faz efeito se você ao tempo que adicioná-lo na comida da sua sogra tratá-la muito bem”. Deve preparar a comida para ela com carinho, sentar-se à mesa com ela para tomar as refeições, procurar passear com ela em lugares agradáveis, pedir a ela alguns favores, assim ninguém desconfiará e ela tomará toda a dose necessária para morrer.
Passados alguns dias a nora começou a ficar extremamente apreensiva sentindo que ao contrário do que pensava a sogra gostava dela e ambas sentiam prazer com a companhia da outra. Começou a ver na sogra uma amiga e mãe. Arrependida, foi novamente ao mago e, desesperada, pede a ele um antídoto para impedir que a sogra morresse envenenada, pois não poderia mais ser feliz sentindo-se culpada pela morte de uma pessoa tão boa. Então o mago lhe diz: “Não precisa antídoto. Eu não fiz veneno nenhum, apenas fiz você ver, pela sua própria experiência, que somente convivendo e tratando bem as pessoas é que elas nos amam e nos tratam bem.”
Preciso contar essa estória da carochinha para a pessoa que está angustiada achando que não é amada pela família. Devo contá-la também para quem não consegue perdoar os erros de parentes ou amigos e os pune com indiferença, chamando para si mais indiferença. Preciso colar essa mensagem na cabeceira da minha cama e ler todos os dias para me lembrar que relações boas são construídas, um pouquinho, todos os dias, seja na nossa casa, seja na nossa vida.
Nova Lima, MG, Brasil, 10 de junho de 2011.
quarta-feira, 8 de junho de 2011
Marias - diversidade que liberta!
Marias – diversidade que liberta!
Delze dos Santos Laureano
“Quem traz no corpo a marca Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria”
Milton Nascimento e Fernando Brant
Penso que a primeira ideia que nos vem à mente quando pensamos na mulher hoje é a da mulher urbana, trabalhadora, realizada e feliz porque se viu livre do domínio que a condenava à inferioridade mantida por tantos séculos. Até mesmo a obrigação de gerar filhos tornou-se uma opção. Todavia, não podemos ser ingênuas acreditando existir um tipo ideal de mulher, como se ele representasse de fato todas as mulheres de hoje, de todas as idades e com os diversos problemas que enfrentam, seja nas relações afetivas, na família, no trabalho ou no meio social e político em que vivem.
Mesmo considerando que são algumas dessas mulheres urbanas - essas que se fizeram autônomas por terem renda própria e por se desvencilharem dos tabus e dos preconceitos morais - as que melhor representam a emancipação feminina, não podemos esquecer as que ainda vivem sob o jugo dos pais, dos companheiros , dos patrões e do mercado, nesta nossa sociedade patriarcal e machista que fez tudo virar mercadoria por meio da exploração capitalista desmedida.
Penso nas mulheres que mesmo tendo conquistado a emancipação frente ao machismo estão sobrecarregadas com o ônus da própria emancipação. Hoje somos trabalhadoras com dupla, ou até de trilha jornada. Somos as vítimas das doenças antes típicas dos homens, somos as que carregam o peso do provimento exclusivo da prole pelo simples fato de podermos romper com as relações afetivas sem afeto.
Olhando para o passado, vemos que foi a partir de 1960 que o movimento de libertação das mulheres desencadeou-se como parte integrante de um movimento cultural da juventude. No final do século XX, um número expressivo de mulheres entrou no mercado de trabalho, chegando mesmo a ser, em determinados setores, como nas universidades, em número maior do que os homens. A economia capitalista, baseada no estímulo e na criação incessante de novas e artificiais necessidades, foi a que mais contribuiu para o crescimento da participação das mulheres no mercado de trabalho, de modo a que viessem a ser uma fonte suplementar de rendimentos, necessária para a realização dos sonhos da sociedade de consumo. Nos nossos dias os quadros femininos passaram a atingir o topo da carreira em algumas empresas.
A história mostra, todavia, que as mulheres sempre trabalharam, apesar de por muito tempo não ter sido reconhecido o valor econômico do trabalho feminino. Nas sociedades primitivas, por exemplo, as mulheres executavam as tarefas agrícolas e domésticas. No neolítico as mulheres criaram a agricultura e, por isso, começaram a esmerar-se na arte da hospitalidade, do cuidado da casa e do quintal, enquanto os homens incumbiam-se da caça e da pesca, iniciando o processo cultural de ser o homem forte, dominador e predador e a mulher a que tem de cuidar do lar e da prole.
A partir da Revolução Industrial e nas situações extremas, como no período das duas grandes guerras foi que as mulheres passaram a trabalhar massiçamente nas fábricas tendo de deixar por longo período as suas casas. É de se notar que em todos esses momentos elas não deixaram de assumir as tarefas domésticas. Para justificar a dupla jornada, essa “realidade” foi mascarada por uma cultura que valoriza a liberdade e o bem-estar individual. O trabalho doméstico passou a ser visto como uma forma de submissão ao homem. A ideologia dominante forjou o reconhecimento social do trabalho feminino atrelado a ideias como o direito a uma “vida autônoma” e à independência econômica.
Os próprios homens tiveram de reconhecer a legitimidade do trabalho assalariado feminino como instrumento de autonomia e realização pessoal, a despeito de muitas vezes ser cristalino para todos que nem mesmo sob o aspecto econômico é vantajosa a venda de toda a força de trabalho da família no mercado. Quando ambos os cônjuges estão fora do lar, e por muitas horas nas empresas, há irremediavelmente uma perda na qualidade de vida de todos. Pais e filhos ficam expostos à vulnerabilidade de uma sociedade que não tem mais tempo para conviver, para cultivar a espiritualidade, para a participação na vida em sociedade ou até mesmo para usufruir dos bens adquiridos pelo trabalho. A inserção acrítica da mulher no mercado reafirma na prática a voz que inconscientemente profere: “Patrões, explorem-nos como vocês exploram os nossos maridos.”
Os problemas tornam-se mais visíveis entre as famílias pobres que não dispõem de creches, de escolas que cuidem efetivamente do desenvolvimento integral das crianças e acabam pagando um alto preço por isso. Deparamo-nos cotidianamente com notícias dos jovens pobres a serviço do narcotráfico, das adolescentes grávidas sem a mínima condição para ampararem suas famílias, desamparadas elas mesmas desde tenra idade. Perpetua-se deste modo o círculo vicioso da pobreza, da exclusão e da violência em todas as suas formas.
Percebemos neste início de século que ainda estão distantes as conquistas que possam significar emancipação feminina efetiva. O discurso hegemônico faz acreditar que todas podemos viver bem, desde que lutemos individualmente para isso. É o mito do sucesso pessoal que nos leva para os cantos da irracionalidade da vida. Cada uma das mulheres busca a conquista do lugar social para si e para a família seguindo o receituário do mercado.
Vemos que na busca de um sonho inatingível empenhamos nossas forças sem ter muita consciência de que, na prática, estamos é contribuindo para a manutenção de um sistema opressor, que absolutiza o lucro e afasta ou pisoteia pessoas. Esse mesmo sistema que deixa o rastro das mazelas sociais e ambientais que nos assustam na atualidade: as catástrofes climáticas, a destruição da cultura e dos bens comunitários, esses sim que sustentam os laços de fraternidade e os traços de cultura local.
Nós as mulheres, submissas a esse sistema que tudo coisifica, deixamos também os nossos rastros de poluição, com os nossos carros, com o consumo excessivo de mercadorias que “embelezam” exigindo e roubando o nosso tempo com limpeza e cuidados desnecessários, fazendo desaparecer grande parte do nosso orçamento mediante o uso crescente e excessivo de energia, de água, de todo tipo de objetos e trabalho humano.
Sem perceber, exploramos trabalhadoras/es e biodiversidade quando excedemos no uso de cosméticos, de produtos de higiene pessoal, de artigos de luxo, ou com tanta parafernália para manter a aparência. Ou simplesmente para ficar em dia com as inovações tecnológicas que nos afastam dos serviços que poderiam até minimizar o estresse diário, como o preparo dos alimentos ou costurar e bordar uma roupa. As necessidades humanas são manipuladas pelos meios de comunicação de massa. Nós, presas a esse modo de vida ocidental, construído sob a lógica de um poder dominado por homens e legitimado por mulheres “modelos”, tornamo-nos subservientes ao mercado. Somos, nós mesmas usadas para a compra e venda de todo tipo de mercadoria: carros, apartamentos, cigarros, remédios, cavalos, votos... Vemo-nos reduzidas a essa engrenagem que exclui comunidades inteiras como as do Xingu que lutaram obstinadamente contra um mega projeto assassino de tantas vidas. Essas sim que ainda teriam muito a conquistar em seus próprios territórios.
Por isso tento como Vinícius de Moraes pensar nas meninas cegas inexatas, nas mulheres rotas alteradas, nas meninas grávidas antes do tempo, nas mulheres marginalizadas, nas mulheres operárias da tripla jornada, nas mulheres condenadas aos menores salários em moradias desumanas no campo e na cidade. Quero pensar também em nós mesmas, mulheres que conquistamos um lugar no mercado, desperdiçando o melhor da vida: a oportunidade de conviver, de sentir cada momento vivido com as pessoas que amamos.
Precisamos estar todas juntas para não vivermos com essa visão pessimista do mundo, considerando que “quem só vê o lado negativo das coisas acaba encontrando”. A vida nos mostra todos os dias exemplos de mulher que constrói na luta os caminhos contra a opressão. Vemos por todos os lados mulheres que fazem a diferença como pessoas humanas.
Parafraseando o poeta mineiro, Drumond, digo que olho essas minhas companheiras e vejo que apesar de taciturnas, nutrem grandes esperanças. Entre elas considero uma enorme diversidade. Nessa diversidade sinto ser possível brotar uma sociedade em que vivam mulheres, homens, crianças, pessoas de todos os gêneros, de todo tipo e lugar, de todas as idades, fazendo outro mundo possível. No cuidado da vida na e da perspectiva feminina, não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas!
Delze dos Santos Laureano
“Quem traz no corpo a marca Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria”
Milton Nascimento e Fernando Brant
Penso que a primeira ideia que nos vem à mente quando pensamos na mulher hoje é a da mulher urbana, trabalhadora, realizada e feliz porque se viu livre do domínio que a condenava à inferioridade mantida por tantos séculos. Até mesmo a obrigação de gerar filhos tornou-se uma opção. Todavia, não podemos ser ingênuas acreditando existir um tipo ideal de mulher, como se ele representasse de fato todas as mulheres de hoje, de todas as idades e com os diversos problemas que enfrentam, seja nas relações afetivas, na família, no trabalho ou no meio social e político em que vivem.
Mesmo considerando que são algumas dessas mulheres urbanas - essas que se fizeram autônomas por terem renda própria e por se desvencilharem dos tabus e dos preconceitos morais - as que melhor representam a emancipação feminina, não podemos esquecer as que ainda vivem sob o jugo dos pais, dos companheiros , dos patrões e do mercado, nesta nossa sociedade patriarcal e machista que fez tudo virar mercadoria por meio da exploração capitalista desmedida.
Penso nas mulheres que mesmo tendo conquistado a emancipação frente ao machismo estão sobrecarregadas com o ônus da própria emancipação. Hoje somos trabalhadoras com dupla, ou até de trilha jornada. Somos as vítimas das doenças antes típicas dos homens, somos as que carregam o peso do provimento exclusivo da prole pelo simples fato de podermos romper com as relações afetivas sem afeto.
Olhando para o passado, vemos que foi a partir de 1960 que o movimento de libertação das mulheres desencadeou-se como parte integrante de um movimento cultural da juventude. No final do século XX, um número expressivo de mulheres entrou no mercado de trabalho, chegando mesmo a ser, em determinados setores, como nas universidades, em número maior do que os homens. A economia capitalista, baseada no estímulo e na criação incessante de novas e artificiais necessidades, foi a que mais contribuiu para o crescimento da participação das mulheres no mercado de trabalho, de modo a que viessem a ser uma fonte suplementar de rendimentos, necessária para a realização dos sonhos da sociedade de consumo. Nos nossos dias os quadros femininos passaram a atingir o topo da carreira em algumas empresas.
A história mostra, todavia, que as mulheres sempre trabalharam, apesar de por muito tempo não ter sido reconhecido o valor econômico do trabalho feminino. Nas sociedades primitivas, por exemplo, as mulheres executavam as tarefas agrícolas e domésticas. No neolítico as mulheres criaram a agricultura e, por isso, começaram a esmerar-se na arte da hospitalidade, do cuidado da casa e do quintal, enquanto os homens incumbiam-se da caça e da pesca, iniciando o processo cultural de ser o homem forte, dominador e predador e a mulher a que tem de cuidar do lar e da prole.
A partir da Revolução Industrial e nas situações extremas, como no período das duas grandes guerras foi que as mulheres passaram a trabalhar massiçamente nas fábricas tendo de deixar por longo período as suas casas. É de se notar que em todos esses momentos elas não deixaram de assumir as tarefas domésticas. Para justificar a dupla jornada, essa “realidade” foi mascarada por uma cultura que valoriza a liberdade e o bem-estar individual. O trabalho doméstico passou a ser visto como uma forma de submissão ao homem. A ideologia dominante forjou o reconhecimento social do trabalho feminino atrelado a ideias como o direito a uma “vida autônoma” e à independência econômica.
Os próprios homens tiveram de reconhecer a legitimidade do trabalho assalariado feminino como instrumento de autonomia e realização pessoal, a despeito de muitas vezes ser cristalino para todos que nem mesmo sob o aspecto econômico é vantajosa a venda de toda a força de trabalho da família no mercado. Quando ambos os cônjuges estão fora do lar, e por muitas horas nas empresas, há irremediavelmente uma perda na qualidade de vida de todos. Pais e filhos ficam expostos à vulnerabilidade de uma sociedade que não tem mais tempo para conviver, para cultivar a espiritualidade, para a participação na vida em sociedade ou até mesmo para usufruir dos bens adquiridos pelo trabalho. A inserção acrítica da mulher no mercado reafirma na prática a voz que inconscientemente profere: “Patrões, explorem-nos como vocês exploram os nossos maridos.”
Os problemas tornam-se mais visíveis entre as famílias pobres que não dispõem de creches, de escolas que cuidem efetivamente do desenvolvimento integral das crianças e acabam pagando um alto preço por isso. Deparamo-nos cotidianamente com notícias dos jovens pobres a serviço do narcotráfico, das adolescentes grávidas sem a mínima condição para ampararem suas famílias, desamparadas elas mesmas desde tenra idade. Perpetua-se deste modo o círculo vicioso da pobreza, da exclusão e da violência em todas as suas formas.
Percebemos neste início de século que ainda estão distantes as conquistas que possam significar emancipação feminina efetiva. O discurso hegemônico faz acreditar que todas podemos viver bem, desde que lutemos individualmente para isso. É o mito do sucesso pessoal que nos leva para os cantos da irracionalidade da vida. Cada uma das mulheres busca a conquista do lugar social para si e para a família seguindo o receituário do mercado.
Vemos que na busca de um sonho inatingível empenhamos nossas forças sem ter muita consciência de que, na prática, estamos é contribuindo para a manutenção de um sistema opressor, que absolutiza o lucro e afasta ou pisoteia pessoas. Esse mesmo sistema que deixa o rastro das mazelas sociais e ambientais que nos assustam na atualidade: as catástrofes climáticas, a destruição da cultura e dos bens comunitários, esses sim que sustentam os laços de fraternidade e os traços de cultura local.
Nós as mulheres, submissas a esse sistema que tudo coisifica, deixamos também os nossos rastros de poluição, com os nossos carros, com o consumo excessivo de mercadorias que “embelezam” exigindo e roubando o nosso tempo com limpeza e cuidados desnecessários, fazendo desaparecer grande parte do nosso orçamento mediante o uso crescente e excessivo de energia, de água, de todo tipo de objetos e trabalho humano.
Sem perceber, exploramos trabalhadoras/es e biodiversidade quando excedemos no uso de cosméticos, de produtos de higiene pessoal, de artigos de luxo, ou com tanta parafernália para manter a aparência. Ou simplesmente para ficar em dia com as inovações tecnológicas que nos afastam dos serviços que poderiam até minimizar o estresse diário, como o preparo dos alimentos ou costurar e bordar uma roupa. As necessidades humanas são manipuladas pelos meios de comunicação de massa. Nós, presas a esse modo de vida ocidental, construído sob a lógica de um poder dominado por homens e legitimado por mulheres “modelos”, tornamo-nos subservientes ao mercado. Somos, nós mesmas usadas para a compra e venda de todo tipo de mercadoria: carros, apartamentos, cigarros, remédios, cavalos, votos... Vemo-nos reduzidas a essa engrenagem que exclui comunidades inteiras como as do Xingu que lutaram obstinadamente contra um mega projeto assassino de tantas vidas. Essas sim que ainda teriam muito a conquistar em seus próprios territórios.
Por isso tento como Vinícius de Moraes pensar nas meninas cegas inexatas, nas mulheres rotas alteradas, nas meninas grávidas antes do tempo, nas mulheres marginalizadas, nas mulheres operárias da tripla jornada, nas mulheres condenadas aos menores salários em moradias desumanas no campo e na cidade. Quero pensar também em nós mesmas, mulheres que conquistamos um lugar no mercado, desperdiçando o melhor da vida: a oportunidade de conviver, de sentir cada momento vivido com as pessoas que amamos.
Precisamos estar todas juntas para não vivermos com essa visão pessimista do mundo, considerando que “quem só vê o lado negativo das coisas acaba encontrando”. A vida nos mostra todos os dias exemplos de mulher que constrói na luta os caminhos contra a opressão. Vemos por todos os lados mulheres que fazem a diferença como pessoas humanas.
Parafraseando o poeta mineiro, Drumond, digo que olho essas minhas companheiras e vejo que apesar de taciturnas, nutrem grandes esperanças. Entre elas considero uma enorme diversidade. Nessa diversidade sinto ser possível brotar uma sociedade em que vivam mulheres, homens, crianças, pessoas de todos os gêneros, de todo tipo e lugar, de todas as idades, fazendo outro mundo possível. No cuidado da vida na e da perspectiva feminina, não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas!
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