Delze dos Santos Laureano
Para situar o leitor
A Comunidade Dandara é um exemplo de organização e luta por moradia e pelo direito à cidade em Belo Horizonte. No dia 05 de julho de 2011, mais de novecentas pessoas, entre homens, mulheres, crianças e idosos, percorreram os vinte e cinco quilômetros que separam aquele bairro da região central de Belo Horizonte. Além de mostrar ao Poder Judiciário a força de organização daquela comunidade (em vista da audiência que se realizava na mesma data, na 20ª Vara Civil, para decidir acerca da reintegração de posse requerida por uma empresa que se diz proprietária do imóvel), a marcha fortaleceu internamente os laços de solidariedade construídos ao longo desses 02 anos de resistência naquele território.
A organização e a determinação da Comunidade confirmam para todos os apoiadores: somente a luta educa para a cidadania. A consciência política para a conquista de direitos e para a responsabilidade cidadã não se limitou à conquista de um pedaço de terra.
Como tudo começou: muito medo, preconceito e difamação
O texto abaixo foi escrito em 2009:
Há algum tempo atrás, recebemos uma mensagem, via internet, de um morador do Bairro Céu Azul, em Belo Horizonte, bairro onde está localizada a ocupação Dandara. Lá, desde o dia 09 de abril de 2009, estavam acampadas, e agora estão morando, quase novecentas famílias sem teto e Sem Terra que estão contribuindo na construção de uma nova política urbanística e revelando, a partir da luta por moradia em Belo Horizonte, as grandes contradições e equívocos na política social e agrária em nosso país. As palavras do signatário deram-nos conta de como o senso comum e o preconceito podem atrapalhar a caminhada de uma sociedade rumo à solidariedade democrática. Em vista disso resolvemos, preservando a identidade do morador, usar as palavras do nosso interlocutor como ponto de partida para as reflexões que precisam ser feitas e, sobretudo, dialogadas como os moradores das regiões onde chegam essas novas famílias que lutam de forma organizada pelos territórios, urbanos e rurais.
Vamos chamar o nosso interlocutor de Pedro. Disse ele no e-mail:
Meu nome é Pedro. Sou morador do bairro Céu Azul há 30 anos. Meu pai, com muito sacrifício, comprou e pagou o lote, construiu uma casa e criou sua família. Seguindo o seu exemplo, casei, morei com meus pais e depois de oito anos eu e minha esposa adquirimos um lote e construímos nossa casa também no bairro Céu Azul. Desde 09/04/2009, toda a população do bairro está apreensiva com a iminência da criação de mais uma favela. E, para meu espanto com o apoio de setores da Igreja Católica e de sua Universidade. Não discordo do direito das pessoas de terem um teto para morar, mas que as coisas sejam feitas dentro da normalidade e legalidade , não invadindo terrenos e colocando lá pessoas de bem e outros tantos marginais e pessoas que já possuem casa (até mesmo no Céu Azul). Pelo encaminhamento desse processo, as famílias irão construir barracos naquele local, sem nenhuma infra-estrutura e será um "celeiro" para traficantes, ladrões e outras mazelas que nós brasileiros bem conhecemos. Daí, Frei Gilvander, o senhor e os outros "apoiadores" e "intelectuais" irão virar as costas para estas pessoas e passarão a acompanhar de seus apartamentos na zona sul, essa tragédia humana chamada OCUPAÇÃO DANDARA. Mas, continuo com esperança que a luz da razão ilumine a liderança deste movimento e procure uma solução mais sensata. Não crie mais um problema.”
Após pensarmos em todas as mazelas que resultaram, não apenas no Brasil mas em toda a América Latina, em tanta desigualdade social -mazelas essas que podem ser melhor identificadas nos processos históricos irresponsáveis da colonização européia de expansão capitalista, da ditadura militar e mais recentemente da exploração neoliberal -, formulamos a seguinte resposta ao Pedro.
Caro Pedro, nós, os apoiadores da Comunidade Dandara, somos pessoas comuns, trabalhadoras como você, também somos pais, mães e filhos de trabalhadores explorados ao longo da história deste país. Começamos a trabalhar bem cedo, mas descobrimos que não podíamos ficar acomodados, de braços cruzados dentro da “normalidade e da legalidade” com os pequenos privilégios (direitos conquistados pelos trabalhadores na luta), esperando a nossa aposentadoria, acreditando que os processos de inclusão social, ou seja, a construção de uma sociedade mais justa, fundada no princípio da igualdade, aconteça pelas vias políticas tradicionais. A democracia representativa, essa que você chama de via da normalidade, está sem crédito no mundo inteiro. Os políticos exercem os seus mandatos preocupados com a reeleição. Assim, todos os passos são calculados, só fazem o que vai lhes render mais benefícios no futuro. E para isso fazem pesquisas, aliam-se aos que têm dinheiro, manipulam junto com a mídia as informações. Ao final fazem as regras, que você chama de legalidade, para se beneficiar e para manter tudo como está. Mais dinheiro para quem já tem dinheiro, mais propriedade para quem já tem propriedade.
Por tudo isso é que acreditamos que há muito caminho a ser percorrido, no Brasil e na América Latina, rumo à igualdade. Precisamos conquistar o apoio de pessoas como você, que não faz parte da elite e não tem nada a ganhar com a manutenção de um terreno de 40 hectares, totalmente ocioso, abandonado mesmo, em Belo Horizonte. Veja você, essa é uma região na qual o poder público investiu muito dinheiro, e de toda a sociedade, com asfalto, iluminação pública, rede de água e esgoto. Manter esse terreno vazio por tanto tempo chama-se especulação imobiliária. Além disso há fortes indícios de grilagem e da doação política de terras por agentes públicos na região da Pampulha no passado.
Pedro, o fato de você gastar o seu tempo mandando a mensagem, externando a sua preocupação, é sinal de que quer construir um espaço saudável de convivência. E é isso mesmo que nós queremos também. Não dá mais para apoiarmos falsos projetos de cidade, que isolam os “indesejáveis” (ou eufemisticamente gente diferenciada) bem longe, onerando-lhes o transporte, dificultando-lhes o acesso ao trabalho e renda, aos serviços públicos de saúde, à educação e ao mesmo tempo construindo-se ilhas de tranquilidade em determinados lugares para os mesmos privilegiados, sem contar com o enriquecendo de uns poucos com a especulação imobiliária.
Não podemos compreender sozinhos toda a realidade que nos cerca. Os meios de comunicação em massa noticiam os fatos de acordo com a conveniência dos patrocinadores deles, você não acha? Existe um conluio entre a grande mídia, os políticos e os grandes exploradores capitalistas, bancos, multinacionais, grandes construtoras e empresas mineradoras. Somente chegam até nós as notícias filtradas por eles. Se olharmos bem, nas novelas e na vida dos artistas, como mostrado na televisão, está tudo ótimo no Brasil. O ex-governador de Minas mesmo, o Aécio Neves, foi denunciado várias vezes por violar a liberdade de informação aqui no estado, não deixando que fossem mostradas as mazelas sociais e a violência. Saiu por cima. Elegeu-se senador e agora continua decidindo a nossa vida a partir de Brasília.
Pensamos que se te incomoda a Ocupação Dandara é porque você ainda não conhece bem o que ocorre ali. E realmente pode ter gente na Ocupação que não precisa de casa, que tenta usar a luta de muitos para levar vantagem pessoal. Mas, isso não deslegitima a luta dos que precisam. Em qualquer lugar onde haja seres humanos existem desvios, “pecados”. Existem professores que não merecem esse nome, existem padres que não são sensíveis às causas dos pobres, existem médicos que não deveriam ter o direito de exercer a profissão, e vai por aí a fora. Todavia, a maioria é digna e merece o nosso respeito. Se um sai da exclusão ganha toda a sociedade.
Você mesmo admite que o seu pai somente comprou e pagou o lote onde morou com muito sacrifício. E isso é verdade. No Brasil, o direito de morar foi transferido para a própria população que tem de se virar. Mas não deveria ser o contrário? Se um país quer pessoas saudáveis, pessoas boas trabalhando para desenvolver o país, não deveria em primeiro lugar cuidar para que essas pessoas vivessem com dignidade? Diante desta constatação é que sugerimos a você, ao invés de questionar os apoiadores e as famílias que têm resistido naquele frio e às vezes na chuva e no sol, passando toda a sorte de dificuldades nas barracas, nos barracões frágeis que sequer resistem à ventania, inclusive o criminoso corte da água pela poderosa COPASA, questione toda essa injustiça social, que impõe tanto sacrifício às famílias para adquirirem um pedaço de chão - mesmo para os milhares de desempregados – em um país continental como o Brasil. Nós temos 8,5 milhões de quilômetros quadrados de território e uma população pequena em relação ao tamanho do território, que sofre sem terra para trabalhar e sem casa para morar.
Pedro, o Brasil é um país rico. Você já se deu conta de que muitos não têm casa e emprego porque tem gente que tem propriedade ilegal demais, dinheiro demais, não tributado conforme as leis, e uma grande maioria vivendo que nem bicho pelas ruas. Ou condenados ao isolamento no interior do país desprovido de energia, de estradas, de escolas, de alimentos e serviços de saúde pública? A nossa normalidade e legalidade política são muito injustas e não podem ser invocadas à luz da Constituição de 1988. O poder só age para beneficiar os amigos de quem está no poder. E é contra esse poder, que faz da cidade um espaço para poucos e que joga os demais na periferia de tudo - do transporte, da saúde, da moradia, da escola, da religião -, é que lutamos. Lutamos não só pelos trabalhadores da Ocupação Dandara, lutamos também por você, pelo meio ambiente, pela justiça social, pela política legítima.
Não se preocupe, não estamos levando uma favela para o bairro Céu Azul. A comunidade Dandara nasceu ali após a conscientização de trabalhadores pobres que descobriram por meio da organização democrática que somente juntos poderiam sonhar com uma vida melhor. Temos a certeza de que esses trabalhadores que chegam ao Céu Azul agora serão melhores vizinhos para você que os outros bairros ricos de Belo Horizonte. Sabe por quê? Primeiro, porque nas classes médias altas ninguém se conhece. Normalmente não existe solidariedade entre as pessoas. Eles, de um modo geral têm medo de tudo. Segundo, porque existem drogas e violência em qualquer lugar. Quantos assaltos ocorrem nesses condomínios de luxo?
Quer uma boa notícia? A Comunidade Dandara foi planejada pelos arquitetos da PUC sim. Não porque esses profissionais querem desvalorizar os imóveis dos moradores do bairro Céu Azul, mas porque esses profissionais, capazes de compreender a realidade social existente, entendem que todos têm o direito de morar com dignidade. Fizeram um projeto muito bonito, apesar de simples, para a Ocupação Dandara. Junto com os arquitetos, diversos professores, advogados, pedreiros, religiosos, mães e pais de família arregaçaram as mangas para contribuir na educação de crianças e adultos. Acreditamos que uma sociedade boa é o resultado da educação para se viver em sociedade. Nenhuma sociedade ideal cai do céu, ela é fruto da ação coletiva de todos os que integram essa sociedade mesma. Crianças, desempregados, idosos, mães e pais pobres devem ser cuidados e não abandonados à própria sorte. Se o governo não faz, dentro da normalidade e da legalidade - já que moradia, educação e todos os direitos sociais decorrem da Constituição - nós temos de forçar o governo a fazer.
Já finalizando, gostaríamos de dar-lhe um conselho. Marque com as lideranças uma visita à Ocupação Dandara. Conheça as dificuldades para se resgatar a vida após tanta injustiça social sofrida. Conheça pessoas maravilhosas e inteligentes que vivem ali e cujos filhos às vezes são mesmo vítimas do tráfico. Há também crianças que são vítimas da violência, mulheres cujos maridos são vítimas do alcoolismo. Mas veja, eles mesmos não lucram com tudo isso. Contrariamente há alguém de fora que lucra: jornais sensacionalistas, igrejas descomprometidas com a verdadeira espitualidade, empresas que só pensam no lucro. Sugerimos que você, como bom vizinho, fique amigos dos moradores da Ocupação Dandara. Passe a ver neles seres humanos, pessoas que merecem o nosso apoio e respeito. Veja neles brasileiros, não pessoas que ameaçam qualquer território. Ofereça a eles algum de seus dons, talentos para melhorar a vida de todos. Lá impera a necessidade sim. Precisa-se de tudo. Precisa-se de gente que sabe construir, ler projetos, usar trenas, costurar, ler e escrever. Precisa-se, sobretudo, de gente capaz de ver além das lentes do preconceito e do senso comum.
Tenho certeza que assim você não terá medo daquelas pessoas e nem verá ali um celeiro para o tráfico ou uma maldição que desvalorizará o seu imóvel. Poderá, desta forma, passar a chamá-los pelo nome e verá neles parceiros capazes de expulsar do bairro os traficantes ou os praticantes de outros crimes, principalmente os oportunistas das empresas da especulação imobiliária. Com você, então, cuidaremos melhor do nosso país inteiro, e não apenas no ambiente mais próximo, porque sabemos que não existem muros capazes de manter a desigualdade longe de nós.
Finalmente, não se preocupe conosco, os apoiadores da Dandara. Não vamos nos trancar em nossos apartamentos na zona sul. Somos cidadãos no mundo. Fazemos parte de uma tribo que acredita ser importante juntar todos numa grande Comunidade Dandara! Venha para esta tribo você também. Veja como a sua vida ganhará novo significado! Não temos medo de pobres e lutadores, temos medo é de uma sociedade cujas pessoas acham que já resolveram a sua vida, mesmo passando dificuldades, sem aprender com as mazelas sociais e viram as costas para os outros.
Uma nova mensagem para o nosso leitor
Receba o nosso abraço fraterno - fraternidade que nos ensina a Comunidade Dandara -, neste momento em que celebramos a 3ª Marcha pelo Direito à Cidade e pela dignidade da pessoa humana!
OLÁ DELZE,
ResponderExcluirSOU SEU MAIS NOVO SEGUIDOR.
QUE POSTAGEM DE FÔLEGO (UFA), MAS ESPETACULAR, DELZE.
GOSTEI MUITO DO CONTÉUDO DO SEU BLOG E CREIA QUE ESTAREI SEMPRE POR AQUI.
É TEMPO DE HUMOR.
CONVITE :
CONHEÇA MEU BLOG: “HUMOR EM TEXTO”, COM A CRÔNICA DE HUMOR DA SEMANA:
“AMANTE ORIGINAL”
LÁ VOCÊ NÃO ENCONTRARA PORNOGRAFIA, NEM CONTEÚDOS QUE POSSAM FERIR SUA DIGNIDADE,
É DE HUMOR E...DE GRAÇA!
UM ABRAÇÃO CARIOCA