segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Espitualidade de Natal

Delze dos Santos Laureano[1]

Neste Natal de 2011 ganhei um presente inusitado!
Pelo meio do mês de dezembro fui surpreendida ao ler no blog do Professor José Luiz Quadros[2], de quem sou leitora assídua, um dos mais belos contos de Natal que já li. Vaidade à parte, o conto tem o seguinte título: A DELZE ACREDITA E LAURINHA TAMBÉM!

Nele o autor, Virgílio Mattos, escritor crítico e irreverente em suas provocações pedagógicas, conta a história de uma família acampada, que já na undécima hora da vida fértil e no desolador ambiente de um acampamento urbano, no qual as pessoas pobres desempregadas sequer são consideradas gente, ou mesmo reserva de mercado a ser explorada, descobre que vai ter mais um filho. Mostra Virgílio que a história se repete: tragédia e farsa. Há dois mil anos nascia pobrezinho (nisso eu e Laurinha acreditamos) Jesus de Nazaré, que de tão humano tornou-se divino. Deus se fez pessoa pobre para testemunhar um caminho de salvação. Vejam que contradição: nós procurando deuses para nos salvar. Deus, na contra-hegemonia do sistema, já sabe, há muito, que somente com humanidade há solução para os problemas humanos.[3] O modo como isso se dá? Destaca Virgílio, eu e Laurinha acreditamos numa parábola (obviamente ele permanece cético): o acontecimento da fecundação de uma virgem pelo Espírito Santo.
O texto do Virgílio mostra como em meio à pobreza exige-se das pessoas a mesma falsa moral burguesa. A ética violenta traz sofrimento pelo simples fato de se ter de explicar uma gravidez àquela altura da vida, ou até mesmo a coragem de se ter filhos sem as condições materiais mínimas, aos olhos, é claro, das classes altas, média e rica.[4] É assim mesmo. Aos pobres são impostos princípios morais e éticos que não são os deles. No modo de vestir, nas exigências para se manter a aparência física com o consumo de muito cosmético, totalmente incompatível com a remuneração que recebem pelo trabalho. Hipocrisia dizer que as pessoas têm de passar fome se não têm renda para comprar comida e que o furto é intolerável e deve ser punido com cadeia. Na lógica burguesa todos têm de pagar aluguel mesmo tendo de deixar de comer. Invadir a propriedade privada é um crime para eles e não deve ser tolerado. No entanto, os maiores invasores de terra são os ricos. Os poderosos são os que utilizam de forma predatória os bens naturais. Esse falso discurso ético da segurança jurídica protege mesmo são os muitos privilégios sociais em prejuízo dos mais pobres.
Com a família do conto do Virgílio não é diferente. Ao homem resta a opção dos biscates. À mulher o conformismo de uma vida de percalços e sustos, “mais sustos do que percalços”, ressaltou categórico o autor. E ao final falou a verdade. Eu acredito sim. Acredito que pobres têm o direito de ter filhos. Que o nascimento de toda criança é sinal da continuidade da espécie humana na terra, apesar de tantas atitudes suicidadas. Acredito em virgindade, que não significa hímen intocado, mas fertilidade sempre esperada, ainda que não confirmada. Eu, como o Gonzaguinha, "acredito é na rapaziada". Acredito na humanidade das pessoas apesar da coisificação de tudo em mercadoria. Essa que se tornou a salvação ilusória para todos neste momento da chamada crise do capital.
Por todo lado só se aposta na salvação pelo consumo, redução dos juros para os empréstimos, aumento das exportações, investimento em novas tecnologias. O discurso dominante de se manter o consumo, extraindo mais matéria prima para virar mercadoria, que vendida, consumida, mesmo sem necessidade, alimenta esse demônio voraz chamado mercado. De boca escancarada ele devora tudo rapidamente e pede mais mercadoria. Alimenta-se das forças da morte que trucidam essas pobres crianças que nascem todos os dias nas periferias do mundo, nas favelas, território urbano que sobra para os pobres e somente com muito esforço e tolerância diante das condições desumanas de vida, nas roças sem médicos e fustigados pelo avanço das monoculturas que abusam dos venenos. Nos acampamentos que são o resultado do “progresso”: apropriação dos lugares onde viviam as pessoas quando são tomados para as grandes obras para beneficiar os grandes mercadores e penalizar cada vez mais os pobres e a biodiversidade. Barragens, rodovias, portos, aeroportos para o progresso de uns poucos. Nas áreas inundadas pelas águas que sobram por cima de tanta impermeabilização irresponsável para manter o conforto dos donos da cidade.
Acredito sim, não em ídolos, mas no Deus da vida. Sou crente e também recorro ao professor Roberto Lyra Filho, que, citando o filósofo espanhol Ortega, ensina: as idéias são algo que adquirimos através de um esforço mental deliberado e com maior grau possível de senso crítico. A fé, sinônimo de coragem, é o que nos vem pela educação, pelo lugar que ocupamos na estrutura social. Por isso, eu acredito mesmo porque tenho consciência de classe. Creio na vida, na humanidade que celebramos em todos os natais. Eu acredito em tudo que decreta a morte da morte, enfrentando as forças hegemônicas do capital. Como Cervantes, sei que quem perde bens perde muito (veja as famílias que vivem nas áreas de risco e sofro com elas ao ouvir a chuva forte batendo na minha janela), quem perde um amigo perde mais (não podemos viver sem os nossos amigos, como você Virgílio, que, ao compartilhar às escancaras suas incomodações nos faz crescer), mas quem perde a coragem de ser centelha do divino perde tudo! O Natal nos fortalece na coragem, no agir com o coração, irando-se quando uma injustiça é cometida e se comovendo com a dor do próximo, seja ele de qualquer “cor”.
Assim, bem vindo o Natal! Precisamos de vida nascendo para o humano, não para a mercadoria. Nisso você acredita, eu e a Laurinha também. Vamos, como Menotti del Picchia, ouvir a voz da coisas. Elas mesmas estão gritando: NÃO COMPRE! Nesse Natal e nos outros não vamos mais cair na armadilha de que o aumento das vendas irá salvar o Menino nascido de uma mulher, mas que um dragão apocalíptico ameaçava devorar[5], dragão que, hoje, tem nome: capitalismo.
Feliz 2012 para toda a humanidade, com espiritualidade fraterna! É hora de sermos presença, presente de vida. Basta de presentes de materialidades, simulacro que deturpa o sentido verdadeiro do Natal. Como os magos que, seguindo uma estrela, foram visitar o menino Jesus, urge seguirmos por outros caminhos.
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[1] Advogada, professora, Doutoranda em Direito Internacional Público pela PUC MINAS; Integrante da RENAP – Rede Nacional de Advogados Populares; E-mail: delzesantos@hotmail.com
[2] www.joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot.com
[3] Lembro-me sempre dos conselhos de Menochi del Picchia, na Voz das Coisas, no poema Juca Mulato: “ Não fujas que eu te sigo...onde estejam teus pés, eu estarei contigo. Tudo é nada, ilusão.” A nossa humanidade nos segue desde o nascimento até a morte. Há muitos que ainda se acham imortais! Se sentem deuses, porque são ricos...
[4] É recorrente encontrarmos falas estúpidas que criticam as mulheres pobres que têm filhos sem as condições de educá-los. Chega-se ao absurdo de impor esterilizações forçadas ou até mesmo severas críticas ao exigir acriticamente o uso de contraceptivos para os pobres. Vemos sempre que quem critica gosta muito desses filhos de pobres quando se transformam em trabalhadores servis, os de baixa remuneração para os trabalhos mais desqualificados. O problema é quando esses filhos insurgem-se contra a ordem. Temos como exemplo os jovens pobres na França e Inglaterra que começam a incomodar ao resistirem às abordagens truculentas da polícia estatal.
[5] Uma mulher deu à luz um menino a quem o dragão tentou devorar. (Cf. Apocalipse 12,1-12)

A Delze acredita, a Laurinha também!

A DELZE ACREDITA, LAURINHA TAMBÉM!

Virgílio de Mattos

O velho trabalhador coça a cabeça desconfiado, que história é essa, logo agora, de um filho?
Embora a situação não esteja pra isso, afinal com a idade que tem nem as construtoras que estão laçando qualquer burro pro trabalho duro, se interessam pela sua experiência em fazer qualquer coisa com madeira, operário que, assim como seu pai, levou a vida inteira vendendo a única coisa que podia vender: sua força de trabalho. Está desempregado e velho. Inexoravelmente velho, desgraçadamente desempregado. E ainda por cima com um filho pra criar, logo agora?
Em qualquer outro final de ano do passado a notícia seria bem-vinda, mas agora, sem emprego e sem perspectiva, é que essa velha conformista vem dizer que está grávida?! Pensa alto um “merda” e segue martelando uns restos com os quais pensa em fazer um berço na frente do barracão que acumula as funções de casa e oficina, onde se lê FAZ TUDO, com o zê grafado ao contrário, como se estivéssemos lendo num espelho. José é um hábil artesão mas tem pouco contato com a escrita.
Nem as línguas mais maledicentes do entorno ousam falar mal dela, conformista conformada com uma vida de percalços e sustos, mais sustos do que percalços nessa época das águas destruindo tudo. Nem ela mesma acredita que esteja grávida quando pensava tratar-se da menopausa. E agora? Como é que vai ser? O que vai ser desse menino ou dessa menina?
Na ocupação crepitam esperanças como se fossem fogos de artifício, ainda que os planos repressivos estejam sempre prontos através dos tempos. Os poderosos raciocinam: “é só uma questão de tempo”.
Faz mais de dois mil anos que os filhos pobres dos pobres trabalhadores, sejam eles qualificados ou não, sofrem o mesmo tipo de exploração: a eles só restará vender a própria força de trabalho...
Faz muito tempo que Delze e Laurinha acreditam nessa fábula da mulher do carpinteiro ainda virgem ter engravidado do espírito santo. Mas eu sempre pensei que isso fosse uma fábula, ou quando muito uma parábola. Ninguém pode acreditar numa estória dessas através da história, não faz sentido.
Eu penso na dificuldade daquele carpinteiro explicar pros vizinhos da ocupação aquele filho. Penso nas tropas especiais da polícia procurando a criança pra ser destruída, penso nos barracos destruídos não pelas forças repressivas a serviço da exploração, mas pela burrice dos alcaides de plantão em pensar – poderosos de ocasião – que podem conter a força das águas com estupidez e concreto, grana por fora das empreiteiras e gana de acumulação.
Penso, sobretudo, nos idiotas que naturalizam essas questões com o mais estúpido ainda “sempre foi assim”. E que transformam o aniversário de um deus que Laurinha e Delze acreditam na verdadeira festa dos comerciantes.
NÃO COMPRE!
Nesse natal e nos outros não caia na armadilha, esteja preparado para denunciar as religiões, essa droga poderosa, e, sobretudo, a epidemia de falta de solidariedade – esse atoleiro – que pululam como cogumelos nessa época das águas.
Despreze as ilusões, leitor molhado, prepare-se pra luta. Nisso também a Delze e a Laurinha acreditam, e você?