sábado, 16 de julho de 2011

Golpe de Estelionato

A MULHER QUE BENZIA DINHEIRO
Delze dos Santos Laureano

Em tempo de férias, vou aproveitar para contar um causo. Parece até golpe do bilhete de loteria premiado. De antemão confesso que tenho certo fascínio pelo crime de estelionato.
Contam que esse fato ocorreu em Guanhães, no apagar das luzes dos anos 1990. Eu já não morava mais por aquelas bandas, portanto não posso garantir que seja verdadeiro, mas fiquei sabendo do ocorrido em detalhes e até hoje fico pensando como pessoas honestas caíram no conto daquela vigarista. Uma coisa, porém é certa, a maioria que cai em golpe de estelionatário é gente ambiciosa. Valha-me Deus!
Neste caso, nem preciso avisar que caíram no conto da benzedeira os que já tinham riqueza, pois como é que pobre ia arranjar dinheiro para benzer? A mulher era especialista em benzer dinheiro vivo e depois passou a benzer jóia também.
Para quem ainda não conhece, Guanhães é uma dessas típicas cidades do interior de Minas. Vale a pena visitar. Lugar de muito morro, água boa, povo bom, hospitaleiro e bravo. Os mais antigos são de pouca conversa e até bem pouco tempo corria a notícia de que matavam por muito pouco. Não é à toa que ouvimos contar aquelas anedotas de paulistas e cariocas querendo tirar onda prá cima dos matutos. Mas..., matuto, pitando o seu cigarrinho de palha, sem se deixar enganar, manda os atrevidos embora “com três nós no rabo”. Quem acha que é fácil passar matuto para trás está muito enganado. Mas, infelizmente, prá aquelas bandas, há muito, já não temos mais matutos. Em todo canto chegou foi a modernidade, tempos em que se dá mesmo valor é a dinheiro. Por isso, vemos que a danada da benzedeira conseguiu passar muito espertinho para trás.
Ninguém precisa ficar magoado comigo por contar esse causo. Poderia ter acontecido em qualquer outro lugar, até mesmo no centro de Belo Horizonte, onde ocorrem golpes todos os dias. Mas prá matar a saudade, prefiro dizer que aconteceu mesmo em Guanhães. Ninguém se ofenda. Se ofensa fosse estaria eu ofendendo a mim mesma. Vamos então à história. Apareceu na cidade uma mulher desconhecida. Lugar pequeno, as pessoas logo foram se dando conta da chegada da distinta na praça, que começou a ter mais intimidade com um e com outro, esbanjando simpatia. (Já viram estelionatário antipático? Não existe.)
De repente, lá estava ela no fundo das cozinhas. De fato, quando menos damos fé já tratamos pessoas desconhecidas como se as conhecêssemos de longa data. Conversa vai, conversa vem, alguém começa a espalhar, no pé de ouvido, que a mulher tinha poderes sobrenaturais. Naquela época de grandes incertezas, década perdida, quando tantas agruras vivemos, não é de se estranhar a atribuição de dons sobrenaturais às pessoas. Os poderes ocultos aparecem para salvar o povo das dificuldades.
Mas o que fazia a mulher? Como já disse, benzia dinheiro. Era assim o procedimento: a pessoa trazia o dinheiro para a casa da benzedeira, à noite, dentro de um envelope fechado. Pela manhã, podia buscar o valor milagrosamente dobrado. Se se deixava, por exemplo, uma nota de 10, no dia seguinte havia duas notas de mesmo valor. A reza era braba mesmo! Pelo serviço a benzedeira pedia apenas uma ajuda voluntária para as obras sociais que dizia manter.
Como todo bom mineiro “só acredita na fumaça depois que vê o fogo”, foram os meus conterrâneos deixando o dinheirinho aos poucos. Todo dia arriscavam apenas um pouquinho. Ninguém tinha coragem de deixar quantia grande. Mas, dia após dia, a fama da mulher, que com certeza tinha um bom capital de giro, foi aumentando. E o poder sobrenatural daquela criatura foi sendo confirmado pelos que almejavam ganhar a vida fácil. Era só deixar o dinheiro e buscar o lucro no dia seguinte. Acredito que até os gerentes dos bancos e os agiotas começaram a ficar preocupados com a concorrência desleal. Todos sabiam ser impossível competir com a danada, mas abertamente ninguém falava da atividade ilícita na cidade. O boato corria silenciosamente, na base da amizade e do segredo. Muitos se apressavam para se dar bem.
Quando já tinha ganhado a confiança na praça, a vilã não titubeou. Armou o golpe de misericórdia. Começou a benzer também jóias. Essas é que poderiam enriquecer as pessoas de vez. Aí, virou uma festa. Ninguém mais duvidava. A mulher tinha mesmo super poderes. Gente que andava perdendo dinheiro e desanimada com os negócios começou a ver muita luz no fim do túnel. Era só ter uma jóia benzida que os negócios iam prá frente.
E assim muitos passaram a recorrer aos prodígios daquela “boa” mulher, que em troca dos serviços pedia apenas uma pequena contribuição. De um modo geral os valores morais e éticos tão significativos nas pequenas comunidades desapareceram naquele momento de euforia. Gente boa, sorrateiramente, passou a acreditar no ganho fácil, sem trabalho árduo, desde que tivessem as suas riquezas abençoadas pela mulher.
Como toda farsa, aquela festa também teve um fim. Não sei de que forma a maldita benzedeira conseguiu, sem que as pessoas percebessem, acumular numa mesma noite tanto dinheiro e jóias para benzer. Só sei que na véspera do ocorrido houve grandes saques nos bancos da cidade. Muito dinheiro e jóia passou silenciosamente pela porta da casa da vigarista, todavia, sem a menor garantia. A confiança era tamanha que se tornou desnecessário qualquer documento.
Na manhã seguinte aconteceu o inesperado. Melhor dizendo, o mais do que esperado. A mulher anoiteceu e não amanheceu na cidade. Até hoje ninguém sabe do seu paradeiro. Dinheiro e jóias foram os seus únicos companheiros naquela viagem solitária de fuga noite adentro. Minto, não foram seus únicos companheiros, porque naquela mesma noite um caminhão também havia sido deixado na porta da maldita com as chaves e o documento para receber a reza. Diziam, “mode” melhorar os negócios.
Alguns indignados, e até hoje desconcertados por terem caído no golpe, contam ressentidos terem levado todas as suas economias para a benção especial e final. Outros, silenciosos e envergonhados amargaram o prejuízo, mas juram nunca ter ocorrido tal fato na cidade. Não têm a coragem de reconhecer publicamente o maldito golpe do qual foram vítimas. Foi muito triste aquele fatídico dia na cidade. Aos prejudicados só restaram os suspiros e as pragas que rogaram para a maldita benzedeira que desapareceu na calada da noite.
E quem nunca caiu em conto de vigarista que invente outra!

sábado, 9 de julho de 2011

Cuidar da vida como bons pastores

Fé e Política: Espiritualidade, Ecologia e Economia


Delze dos Santos Laureano

Cuidar da vida sob as dimensões da Fé e da Política passa inevitavelmente pelo entendimento de qual é o nosso papel neste mundo como pessoas cristãs, considerando de antemão que somos seres sociais e políticos. Todos querem viver bem. E viver bem, acredito, é viver em paz, com espiritualidade plena em um ambiente ecologicamente saudável, tendo as necessidades vitais dignamente resolvidas, o que ocorre com a distribuição equânime dos recursos econômicos. Mas como vamos enfrentar essa tarefa de criar por meio da política as condições adequadas de convivência justa e solidária neste mundo?
Esse é um desafio a ser resolvido coletivamente. O poder político, que é terreno, somente poderá ser atribuído a seres humanos, pois sabemos da inexistência de deuses governantes. Platão, de forma eloquente, ensinou que a política não é o melhor lugar para projetarmos nossos anelos de uma existência perfeita, justa e feliz. Para isso seria necessário a volta à idade de ouro, ao governo dos filósofos-reis, o que é manifestamente impossível.
No mito de cronos temos a notícia de uma sociedade na qual os governantes não eram homens, mas semideuses (daimons), que graças à sua filantropia faziam reinar entre os homens a paz, a sólida justiça e a paz perpétua. Mas o mito conclui, e nisto é verdadeiro ainda hoje, nos estados onde reina não um deus, mas um mortal, os cidadãos não podem ser livres dos males e da labuta. Não há como eliminar o mal da vida humana imaginando vivermos em uma sociedade farta e sem trabalho, onde tudo já está pronto.
Diferentemente do que muitos acusam Platão não tentou legitimar o poder político absoluto, antidemocrático, atribuindo poder divino ao ser humano para a salvação de todos. O que nos mostra Platão é que no governo imperfeito de humanos as leis é que conduzem à virtude. Todavia, a nossa experiência revela que as leis estão sujeitas à interpretação. E a interpretação é a de quem está no poder. Leis não guardam em si mesmas um sentido determinado, surgindo daí a necessidade da participação de todos para que elas sejam aplicadas de forma justa.
Na Bíblia, no Salmo 23, o Bom Pastor, ajuda-nos no reconhecimento de uma trajetória humana rumo à realização plena do ser humano. Nas linhas, mas principalmente nas entrelinhas, o texto mostra a necessária interdependência de valores espirituais, ecológicos e econômicos para a realização integral do ser humano.
Mas, o que é ser um bom pastor? Platão mostra que o pastor é também ovelha. Na Bíblia o pastor é aquele que cuida conduzindo por águas tranqüilas. Ser pastor é seguir à frente, pois o vaqueiro é que vai atrás. O pastor segue adiante do rebanho com o seu cajado, descobrindo entre as pedras as falhas que põem em risco a vida. Todo caminho tem riscos e inimigos.
As “águas tranqüilas” – espiritualidade – é a paz na caminhada, fruto da justiça e do cuidado. É a mística e a paixão que nos guiam pela vida. Na política, o líder não pode se esquecer que conduz pessoas e não coisas. As “verdes pastagens” – ecologia - são lugar de descanso, mas também de caminhada. Lugar onde se sente prazer, contudo, sem cair nos riscos da zona de conforto. É preciso seguir sempre em frente e experimentar na nossa vida a partilha, “mesa farta” para todos – dimensão econômica -, onde transbordam taças, mesmo diante de adversidades.
Essa então a nossa morada, lugar onde poderemos ser ungidos com a certeza da vida plena: Travessia!
Nova Lima, 11 de julho de 2011.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Relembrando a Carta a Pedro - para celebrar a 3a marcha de Dandara

Delze dos Santos Laureano


Para situar o leitor

A Comunidade Dandara é um exemplo de organização e luta por moradia e pelo direito à cidade em Belo Horizonte. No dia 05 de julho de 2011, mais de novecentas pessoas, entre homens, mulheres, crianças e idosos, percorreram os vinte e cinco quilômetros que separam aquele bairro da região central de Belo Horizonte. Além de mostrar ao Poder Judiciário a força de organização daquela comunidade (em vista da audiência que se realizava na mesma data, na 20ª Vara Civil, para decidir acerca da reintegração de posse requerida por uma empresa que se diz proprietária do imóvel), a marcha fortaleceu internamente os laços de solidariedade construídos ao longo desses 02 anos de resistência naquele território.
A organização e a determinação da Comunidade confirmam para todos os apoiadores: somente a luta educa para a cidadania. A consciência política para a conquista de direitos e para a responsabilidade cidadã não se limitou à conquista de um pedaço de terra.

Como tudo começou: muito medo, preconceito e difamação

O texto abaixo foi escrito em 2009:

Há algum tempo atrás, recebemos uma mensagem, via internet, de um morador do Bairro Céu Azul, em Belo Horizonte, bairro onde está localizada a ocupação Dandara. Lá, desde o dia 09 de abril de 2009, estavam acampadas, e agora estão morando, quase novecentas famílias sem teto e Sem Terra que estão contribuindo na construção de uma nova política urbanística e revelando, a partir da luta por moradia em Belo Horizonte, as grandes contradições e equívocos na política social e agrária em nosso país. As palavras do signatário deram-nos conta de como o senso comum e o preconceito podem atrapalhar a caminhada de uma sociedade rumo à solidariedade democrática. Em vista disso resolvemos, preservando a identidade do morador, usar as palavras do nosso interlocutor como ponto de partida para as reflexões que precisam ser feitas e, sobretudo, dialogadas como os moradores das regiões onde chegam essas novas famílias que lutam de forma organizada pelos territórios, urbanos e rurais.
Vamos chamar o nosso interlocutor de Pedro. Disse ele no e-mail:

Meu nome é Pedro. Sou morador do bairro Céu Azul há 30 anos. Meu pai, com muito sacrifício, comprou e pagou o lote, construiu uma casa e criou sua família. Seguindo o seu exemplo, casei, morei com meus pais e depois de oito anos eu e minha esposa adquirimos um lote e construímos nossa casa também no bairro Céu Azul. Desde 09/04/2009, toda a população do bairro está apreensiva com a iminência da criação de mais uma favela. E, para meu espanto com o apoio de setores da Igreja Católica e de sua Universidade. Não discordo do direito das pessoas de terem um teto para morar, mas que as coisas sejam feitas dentro da normalidade e legalidade , não invadindo terrenos e colocando lá pessoas de bem e outros tantos marginais e pessoas que já possuem casa (até mesmo no Céu Azul). Pelo encaminhamento desse processo, as famílias irão construir barracos naquele local, sem nenhuma infra-estrutura e será um "celeiro" para traficantes, ladrões e outras mazelas que nós brasileiros bem conhecemos. Daí, Frei Gilvander, o senhor e os outros "apoiadores" e "intelectuais" irão virar as costas para estas pessoas e passarão a acompanhar de seus apartamentos na zona sul, essa tragédia humana chamada OCUPAÇÃO DANDARA. Mas, continuo com esperança que a luz da razão ilumine a liderança deste movimento e procure uma solução mais sensata. Não crie mais um problema.”

Após pensarmos em todas as mazelas que resultaram, não apenas no Brasil mas em toda a América Latina, em tanta desigualdade social -mazelas essas que podem ser melhor identificadas nos processos históricos irresponsáveis da colonização européia de expansão capitalista, da ditadura militar e mais recentemente da exploração neoliberal -, formulamos a seguinte resposta ao Pedro.


Caro Pedro, nós, os apoiadores da Comunidade Dandara, somos pessoas comuns, trabalhadoras como você, também somos pais, mães e filhos de trabalhadores explorados ao longo da história deste país. Começamos a trabalhar bem cedo, mas descobrimos que não podíamos ficar acomodados, de braços cruzados dentro da “normalidade e da legalidade” com os pequenos privilégios (direitos conquistados pelos trabalhadores na luta), esperando a nossa aposentadoria, acreditando que os processos de inclusão social, ou seja, a construção de uma sociedade mais justa, fundada no princípio da igualdade, aconteça pelas vias políticas tradicionais. A democracia representativa, essa que você chama de via da normalidade, está sem crédito no mundo inteiro. Os políticos exercem os seus mandatos preocupados com a reeleição. Assim, todos os passos são calculados, só fazem o que vai lhes render mais benefícios no futuro. E para isso fazem pesquisas, aliam-se aos que têm dinheiro, manipulam junto com a mídia as informações. Ao final fazem as regras, que você chama de legalidade, para se beneficiar e para manter tudo como está. Mais dinheiro para quem já tem dinheiro, mais propriedade para quem já tem propriedade.
Por tudo isso é que acreditamos que há muito caminho a ser percorrido, no Brasil e na América Latina, rumo à igualdade. Precisamos conquistar o apoio de pessoas como você, que não faz parte da elite e não tem nada a ganhar com a manutenção de um terreno de 40 hectares, totalmente ocioso, abandonado mesmo, em Belo Horizonte. Veja você, essa é uma região na qual o poder público investiu muito dinheiro, e de toda a sociedade, com asfalto, iluminação pública, rede de água e esgoto. Manter esse terreno vazio por tanto tempo chama-se especulação imobiliária. Além disso há fortes indícios de grilagem e da doação política de terras por agentes públicos na região da Pampulha no passado.
Pedro, o fato de você gastar o seu tempo mandando a mensagem, externando a sua preocupação, é sinal de que quer construir um espaço saudável de convivência. E é isso mesmo que nós queremos também. Não dá mais para apoiarmos falsos projetos de cidade, que isolam os “indesejáveis” (ou eufemisticamente gente diferenciada) bem longe, onerando-lhes o transporte, dificultando-lhes o acesso ao trabalho e renda, aos serviços públicos de saúde, à educação e ao mesmo tempo construindo-se ilhas de tranquilidade em determinados lugares para os mesmos privilegiados, sem contar com o enriquecendo de uns poucos com a especulação imobiliária.
Não podemos compreender sozinhos toda a realidade que nos cerca. Os meios de comunicação em massa noticiam os fatos de acordo com a conveniência dos patrocinadores deles, você não acha? Existe um conluio entre a grande mídia, os políticos e os grandes exploradores capitalistas, bancos, multinacionais, grandes construtoras e empresas mineradoras. Somente chegam até nós as notícias filtradas por eles. Se olharmos bem, nas novelas e na vida dos artistas, como mostrado na televisão, está tudo ótimo no Brasil. O ex-governador de Minas mesmo, o Aécio Neves, foi denunciado várias vezes por violar a liberdade de informação aqui no estado, não deixando que fossem mostradas as mazelas sociais e a violência. Saiu por cima. Elegeu-se senador e agora continua decidindo a nossa vida a partir de Brasília.
Pensamos que se te incomoda a Ocupação Dandara é porque você ainda não conhece bem o que ocorre ali. E realmente pode ter gente na Ocupação que não precisa de casa, que tenta usar a luta de muitos para levar vantagem pessoal. Mas, isso não deslegitima a luta dos que precisam. Em qualquer lugar onde haja seres humanos existem desvios, “pecados”. Existem professores que não merecem esse nome, existem padres que não são sensíveis às causas dos pobres, existem médicos que não deveriam ter o direito de exercer a profissão, e vai por aí a fora. Todavia, a maioria é digna e merece o nosso respeito. Se um sai da exclusão ganha toda a sociedade.
Você mesmo admite que o seu pai somente comprou e pagou o lote onde morou com muito sacrifício. E isso é verdade. No Brasil, o direito de morar foi transferido para a própria população que tem de se virar. Mas não deveria ser o contrário? Se um país quer pessoas saudáveis, pessoas boas trabalhando para desenvolver o país, não deveria em primeiro lugar cuidar para que essas pessoas vivessem com dignidade? Diante desta constatação é que sugerimos a você, ao invés de questionar os apoiadores e as famílias que têm resistido naquele frio e às vezes na chuva e no sol, passando toda a sorte de dificuldades nas barracas, nos barracões frágeis que sequer resistem à ventania, inclusive o criminoso corte da água pela poderosa COPASA, questione toda essa injustiça social, que impõe tanto sacrifício às famílias para adquirirem um pedaço de chão - mesmo para os milhares de desempregados – em um país continental como o Brasil. Nós temos 8,5 milhões de quilômetros quadrados de território e uma população pequena em relação ao tamanho do território, que sofre sem terra para trabalhar e sem casa para morar.
Pedro, o Brasil é um país rico. Você já se deu conta de que muitos não têm casa e emprego porque tem gente que tem propriedade ilegal demais, dinheiro demais, não tributado conforme as leis, e uma grande maioria vivendo que nem bicho pelas ruas. Ou condenados ao isolamento no interior do país desprovido de energia, de estradas, de escolas, de alimentos e serviços de saúde pública? A nossa normalidade e legalidade política são muito injustas e não podem ser invocadas à luz da Constituição de 1988. O poder só age para beneficiar os amigos de quem está no poder. E é contra esse poder, que faz da cidade um espaço para poucos e que joga os demais na periferia de tudo - do transporte, da saúde, da moradia, da escola, da religião -, é que lutamos. Lutamos não só pelos trabalhadores da Ocupação Dandara, lutamos também por você, pelo meio ambiente, pela justiça social, pela política legítima.
Não se preocupe, não estamos levando uma favela para o bairro Céu Azul. A comunidade Dandara nasceu ali após a conscientização de trabalhadores pobres que descobriram por meio da organização democrática que somente juntos poderiam sonhar com uma vida melhor. Temos a certeza de que esses trabalhadores que chegam ao Céu Azul agora serão melhores vizinhos para você que os outros bairros ricos de Belo Horizonte. Sabe por quê? Primeiro, porque nas classes médias altas ninguém se conhece. Normalmente não existe solidariedade entre as pessoas. Eles, de um modo geral têm medo de tudo. Segundo, porque existem drogas e violência em qualquer lugar. Quantos assaltos ocorrem nesses condomínios de luxo?
Quer uma boa notícia? A Comunidade Dandara foi planejada pelos arquitetos da PUC sim. Não porque esses profissionais querem desvalorizar os imóveis dos moradores do bairro Céu Azul, mas porque esses profissionais, capazes de compreender a realidade social existente, entendem que todos têm o direito de morar com dignidade. Fizeram um projeto muito bonito, apesar de simples, para a Ocupação Dandara. Junto com os arquitetos, diversos professores, advogados, pedreiros, religiosos, mães e pais de família arregaçaram as mangas para contribuir na educação de crianças e adultos. Acreditamos que uma sociedade boa é o resultado da educação para se viver em sociedade. Nenhuma sociedade ideal cai do céu, ela é fruto da ação coletiva de todos os que integram essa sociedade mesma. Crianças, desempregados, idosos, mães e pais pobres devem ser cuidados e não abandonados à própria sorte. Se o governo não faz, dentro da normalidade e da legalidade - já que moradia, educação e todos os direitos sociais decorrem da Constituição - nós temos de forçar o governo a fazer.
Já finalizando, gostaríamos de dar-lhe um conselho. Marque com as lideranças uma visita à Ocupação Dandara. Conheça as dificuldades para se resgatar a vida após tanta injustiça social sofrida. Conheça pessoas maravilhosas e inteligentes que vivem ali e cujos filhos às vezes são mesmo vítimas do tráfico. Há também crianças que são vítimas da violência, mulheres cujos maridos são vítimas do alcoolismo. Mas veja, eles mesmos não lucram com tudo isso. Contrariamente há alguém de fora que lucra: jornais sensacionalistas, igrejas descomprometidas com a verdadeira espitualidade, empresas que só pensam no lucro. Sugerimos que você, como bom vizinho, fique amigos dos moradores da Ocupação Dandara. Passe a ver neles seres humanos, pessoas que merecem o nosso apoio e respeito. Veja neles brasileiros, não pessoas que ameaçam qualquer território. Ofereça a eles algum de seus dons, talentos para melhorar a vida de todos. Lá impera a necessidade sim. Precisa-se de tudo. Precisa-se de gente que sabe construir, ler projetos, usar trenas, costurar, ler e escrever. Precisa-se, sobretudo, de gente capaz de ver além das lentes do preconceito e do senso comum.
Tenho certeza que assim você não terá medo daquelas pessoas e nem verá ali um celeiro para o tráfico ou uma maldição que desvalorizará o seu imóvel. Poderá, desta forma, passar a chamá-los pelo nome e verá neles parceiros capazes de expulsar do bairro os traficantes ou os praticantes de outros crimes, principalmente os oportunistas das empresas da especulação imobiliária. Com você, então, cuidaremos melhor do nosso país inteiro, e não apenas no ambiente mais próximo, porque sabemos que não existem muros capazes de manter a desigualdade longe de nós.
Finalmente, não se preocupe conosco, os apoiadores da Dandara. Não vamos nos trancar em nossos apartamentos na zona sul. Somos cidadãos no mundo. Fazemos parte de uma tribo que acredita ser importante juntar todos numa grande Comunidade Dandara! Venha para esta tribo você também. Veja como a sua vida ganhará novo significado! Não temos medo de pobres e lutadores, temos medo é de uma sociedade cujas pessoas acham que já resolveram a sua vida, mesmo passando dificuldades, sem aprender com as mazelas sociais e viram as costas para os outros.


Uma nova mensagem para o nosso leitor


Receba o nosso abraço fraterno - fraternidade que nos ensina a Comunidade Dandara -, neste momento em que celebramos a 3ª Marcha pelo Direito à Cidade e pela dignidade da pessoa humana!