DIGNO DE UMA GRANDE COMEMORAÇÃO
Virgílio de Mattos
Lembro-me dela na escola. Era uma escola especial dentro de um outro local especialíssimo. Ela me olhava com um jeito tímido desde o dia em que nos conhecemos, parecia uma criança. Sabe esse jeito de olhar que parece que a pessoa tá rindo? Ela olhava assim. Desse jeito. Ou ria de mim me olhando daquele jeito, como se pensasse: esse otário vive aqui onde ninguém quer ficar.
Na festa de formatura do ensino médio, até hoje uma raridade ali naquela escola, conseguimos fazer alguma coisa em grande estilo no refeitório, acho que o Sindieletro emprestou o som, ela continuava com o olhar quase mágico nos olhos trágicos cheios de lágrimas. Naquele dia todo mundo chorou de alegria, o que não deixa de ser uma contradição em termos.
Na memória ainda mais nítido o dia do vestibular. Puta que pariu, ô dia tenso. Só conseguimos os papéis todos na véspera, todo mundo numa má vontade de irritar. Parecia que não seria possível que ela e outras cinco colegas pudessem fazer a prova. Parecia uma corrida de obstáculos.
Até na hora de sairmos pra fazer a prova teve enguiço. Não sei se você se recorda do faniquito que a B. deu por causa da roupa, aquela tensão, todo mundo armado e inseguro com a escolta pouco usual. A doutora me perguntou onde é que estava a minha arma e eu respondi sem graça que tava dentro da pasta. Ela ainda me enquadrou dizendo que se eu precisasse como é que iria fazer até tirar a arma de dentro da pasta? Assim como você e as suas outras cinco colegas eu era um dos poucos desarmados naquele dia. Sabia que as únicas armas necessárias seriam o lápis n.2, a borracha e a caneta preta. O resto já estava dentro da cabeça.
Dei voltas pra ver se você via um pouco a cidade, mas a responsável pela segurança me deu uma dura observando que o caminho tinha que ser o mais curto possível e que a gente era pra estar em comboio. Acho que ela tava com medo, na verdade. Medo de vocês se saírem bem como saíram e aí? Como é que iria ser depois?
Você, minha querida, muito mais do que todos os outros colegas da sua turma – e então, acabou falando tudo pra eles ou ficou na sua? – sabe que essa conquista, o fato em si, é digno de uma grande comemoração.
Eu não vou à festa, não gosto de festa formal. Mas gostei de ter sido convidado. Colocar um terno é definitivamente uma proposta que não me seduz, nem pra ganhar dinheiro tenho usado. Também não irei à colação de grau, acho uma coisa tão insuportável que fico pensando porque não foi ainda abolida. Culto ecumênico você mesma riu do convite porque sabe que não sou dessa gangue. A religião é uma droga pesada que cria dependência e mata.
Fiquei sabendo que você nominou a gente no seu convite, que bandeira, heim?! E que tem gente roendo os cotovelos de inveja de você. Bem feito!
Eu queria dizer, J., que além de querer ter uma filha igual a você, que você me deu um orgulho imenso com a sua amizade e, sobretudo, com a lembrança. Acredito que só você mesma sabe dizer o quanto foi difícil superar os anos de universidade naquelas condições terríveis da penitenciária e da liberdade condicional depois dela. Não é só daquele lado, aqui também tá muito embaçado.
Agora que você tá formada, no mundão, cheia de condição e vontade – disposição nunca faltou, não é mesmo? – vê se tem como ajudar as companheiras de sofrimento, vê se tem como adiantar o lado do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade de algum modo, nem que seja só falando bem.
Seu exemplo, J., é digno de uma grande comemoração. Vai na paz!