Altamira: primeiras impressões
Contra a força destruidora do capital somente a força soberana do povo organizado
Antônio Claret Fernandes*
O mineiro carrega consigo a nostalgia das montanhas, mesclada de saudade, por antecipação, um pouco de desconfiança e certa ironia. É Assim, pois, que chego a Altamira, essa cidade banhada pelo imponente Xingu, ameaçado pela prepotência do Capital.
Outrora aprendi que homem não chora. Não é que chorei nesses poucos dias, mas a saudade é grande! Nomes de pessoas, antes comuns e corriqueiros, agora me invadem a mente e se apresentam como memoráveis. Muito particularmente, o soluço e os olhos lacrimejados de minha mãe, ela que é tão forte, não me sai da memória. Sua voz, cheia de fé, ainda soa em meus ouvidos: ‘Nossa Senhora acompanhe você!’.
Embora não seja muito dado à inovação tecnológica, procurei sondar pessoas do ramo e, com toda a falta de jeito - pela índole matuta e camponesa -, percorri algumas lojas de celulares em Altamira e, por fim, cadastrei-me num plano da Vivo pelo qual se pode falar um minuto para qualquer parte do Brasil por cinco centavos.
Passei o número imediatamente para algumas pessoas amigas e, via e-mail, mandei um recado: ‘se precisar ligar, esse é o telefone!’. E coloquei o número! Confesso que poucos minutos depois, e por diversas vezes seguidas, sempre que me lembrava do celular, abandonado sobre a cama, ia ao quarto e olhava se não havia alguma chamada. Na verdade, estava louco que alguém ligasse!
Cansado de aguardar, coloquei o celular no bolso e, entretido com outras coisas, acabei até me esquecendo dele. E ele tocou! Sua vibração no bolso me deu um susto e, após um riso sem graça diante de um colega que percebera a reação, invadiu-me uma alegria imensa, pois, enfim, pensei, alguém está ligando. Olhei o número: desconhecido. À alegria seguiu-se um desapontamento diante da pergunta, do outro lado: ‘é a Celina’? E depois: ‘desculpe, foi um engano!’.
Tocado tão fortemente por aquele sentimento, me dei conta de que, aos 47 anos, nunca ficara mais que quatro meses seguidos fora de casa. Logo eu, que me achava bastante desprendido, quase sem parada certa, agora passando por essa ‘bobagem’; logo eu que viajara por diversos estados do Brasil, e por alguns outros países, agora me achava ali, doído de saudade. É que entre uma andada e outra se interpunha uma passada em casa, breve que fosse. O que agora eu sentia era, na verdade, uma espécie de saudade por antecipação: ainda que não se tivesse completado uma semana de nossa estada em Altamira, a previsão era para três anos, e isso me tirava do sério, e desconsertava.
Continuo convicto de que ‘nossa pátria é o mundo’, mas todo mundo precisa de um ninho; não para apegar-se, mas para ser-lhe referência, feito terra firme sobre os pés. E o novo ‘ninho’ está, ainda, em construção. Será no seio do povo, nosso aconchego e proteção.
Sentir a distância das pessoas queridas me despertou, de repente, o sentido da solidariedade, e resolvi passar uma mensagem para Dayana, bem longe e sem ir à sua casa há mais de dois anos. Ela faz medicina em Cuba pelo MAB num curso com duração de sete anos. Mas não deu certo! O endereço dela no computador devia ser antigo e a mensagem voltou.
Entre os nomes grudados na memória, alguns, às vésperas de nossa partida de MG, expressavam uma especial preocupação com a nossa segurança. E diziam: ‘cuidado com os índios’! Eu ria sem dizer nada. E agora rio sozinho, cada vez mais convicto de que, se há que se ter cuidado, é com os inimigos dos índios: barrageiros, madeireiros e muitas autoridades, prostrados de joelho frente à força do Capital. Esses são perigosos!
Altamira é uma cidade de contradições! O Xingu, banhando-a, oferece-lhe, gratuitamente, uma vista singular e, aos moradores e visitantes, uma orla aconchegante. Ali é o local do encontro, da convivência e descanso, em especial nos finais de tarde e à noite. Os namorados se encontram, encostados nos muros. As pessoas caminham, correm, e alguns fazem exercícios, espichando a perna sobre um banco e apertando o joelho. A brisa do rio contrasta com o mormaço e o sol escaldante.
Tirado esse cartão postal, que é bem cuidado, Altamira, semelhante às outras cidades da região, carece de políticas públicas elementares. O esgoto corre a céu aberto nos cantos das ruas. Parece não haver serviço de limpeza urbana. Em diferentes pontos, urubus disputam as sacolas de lixo, buscando alimento.
A periferia é pior! As áreas alagadiças, particularmente, onde residem muitas centenas de famílias, a situação é deprimente. Os esgotos, o lixo e, no período das cheias, a água parada sob as palafitas propiciam a incidência de diferentes vetores de inúmeras doenças graves. Essa população mais simples, por vezes em miséria, é a mais sofredora. Mas não perde seu encanto pela vida, manifestado no espírito da boa acolhida.
O mormaço de Altamira, como se fosse uma estufa, impõe uma especial característica às lojas: boa parte delas, particularmente as mais equipadas, dispõe de ar condicionado, por vezes de porta fechada com a inscrição: ‘empurre’! Andando pela rua, sob um sol de rachar, entrei diversas vezes numa ou noutra loja; não para comprar, que não sou desse feitio, mas para me refrescar um pouco naquele ambiente.
As contradições de Altamira tendem a se agravar, enormemente, se Belo Monte for construída. Antes mesmo de sua implantação, os sinais dos impactos negativos são visíveis. São vários os boatos que correm nas ruas, mas nem sempre se confirmam. No dia 27/09, por exemplo, dizem que 1000 homens chegaram à cidade, todos atraídos pela promessa de emprego. Correu em boca miúda que um sujeito teria andado a região avaliando os melhores pontos para se implantarem os bordéis.
Os sinais se fazem visíveis, também, na orla. Os bares, antes rústicos, agora vão ganhando uma nova performance, sem perder seu ar de simplicidade, ao menos por enquanto. Cadeiras e mesas se estendem às dezenas em áreas espaçosas. Os carros estacionados com placas de cidades variadas, o perfil das pessoas sentadas às mesas, e o seu sotaque, desvelam esse novo momento. Altamira não é mais a mesma! A cidade vem sendo invadida por pessoas de diversas partes do Brasil, cada qual com seus interesses e motivações. Eu e um colega de Minas Gerais nos incluímos entre esses.
O comércio, no geral, está movimentado! Um exemplo típico são as lojas de celulares, ramo dominado pelas empresas TIM e VIVO. Num espaço relativamente pequeno, da VIVO, contei dez funcionários, todos ocupados no atendimento aos muitos clientes; a maioria, como eu, buscava ali uma forma eficaz e econômica de comunicação com seus estados de origem. Uma equação difícil, senão impossível! Os planos atraentes, que os funcionários trazem na ponta da língua, nem sempre funcionam.
Do ponto de vista econômico, Altamira começa a experimentar um momento de economia aquecida, para alegria dos empresários em geral. Do ponto de vista sociológico, Altamira está, literalmente, inchando. Em pouco tempo o número de habitantes quase dobrou, saltando para 105 mil habitantes.
Em recente Audiência Pública na cidade, debateram-se os impactos e ameaças do projeto de barragem de Belo Monte. Empresários, com sua visão capitalista, políticos, e parte do povo, que hoje vive na miséria, vêem em Belo Monte um sinal de redenção. O Governo Federal, seduzido e influenciado pelo deus-capital, se aproveita dessa situação, e faz promessas de políticas públicas em troca de Belo Monte. Muitos, porém, questionam e resistem. Um cidadão falou do pós-barragem, como uma ressaca depois da tsunami no mar bravio. O representante do consórcio respondeu, na maior cara de pau, que o momento não seria para isso: ‘ocupemo-nos agora dos empregos gerados, não com o que será daqui a 10 anos’.
Ele procurou dissimular-se, pois sabe muito bem que o efeito ressaca, mais que o aquecimento repentino, é desastroso. Já existem, hoje, várias cidades fantasmas no entorno de barragens as quais, depois de um período ‘aquecido’, caem no completo esquecimento. O que ele fez pode chamar-se de pragmatismo de má fé.
É comum governos e empresas se servirem desse artifício para desviar a atenção do povo. Lula fizera algo semelhante em sua visita a Altamira no 2º semestre de 2010. Acossado por pessoas contrárias a Belo Monte, disse que, ao invés de se posicionarem contra, deveriam pensar formas de uso dos 4 bilhões de reais reservados para a região. Não se sabe, até hoje, se a promessa é real.
Há gente se mexendo feito pigmeu contra gigante, ciente de que todo gigante, por grande que seja, tem os pés de barro. Todo império tem sua fragilidade! Há uma luta histórica da Prelazia do Xingu na defesa dos ribeirinhos e dos povos da Amazônia. Existe o Xingu Vivo, que vem denunciando amiúde esse Belo Monstro e fazendo uma grande articulação, dentro e fora do Brasil. Existem, ainda, movimentos populares incipientes, entre eles o MTD – Movimento dos Trabalhadores Desempregados e o MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens. Há reações espontâneas em áreas ameaçadas pelo projeto Belo Monte, na região urbana de Altamira, com ocupações, duramente reprimidas pela força bruta.
A intervenção do Ministério Público Federal anunciada no dia 28/09 e sua proibição de intervenção das obras de Belo Monte no leito do rio Xingu soou em nosso meio como piada de mau gosto. É que, no momento, não existe nem está planejada nenhuma intervenção direta no rio, pois a prioridade da empresa até dezembro é a infra-estrutura de acesso à região da barragem. O trecho da transamazônica perto da volta do Xingu está sendo asfaltado e os travessões melhorados com essa finalidade, e essas obras continuam a pleno vapor.
Quanto aos peixes ornamentais, principal objeto da suposta paralisação das obras, faz-se necessário um esclarecimento. Não se trata de alguns peixinhos de aquário; trata-se de uma variedade imensa de peixes ornamentais endêmica da Volta Grande do Xingu, a qual se estende por um trecho de mais de 100 km, que será extinta, caso a barragem seja construída. Há ainda outros peixes, animais e plantas que, também endêmicos, teriam o mesmo fim.
O impacto sobre o rio e seu entorno significa o impacto sobre o ser humano. O exemplo são, de novo, os peixes ornamentais. Os pescadores conseguiram junto ao IBAMA uma licença para sua exploração sustentável, inclusive para exportação. Extingui-los é, portanto, tirar o ganha-pão desses trabalhadores. É muito contraditório que o IBAMA, tendo concedido licença aos pescadores, agora conceda uma licença a favor de Belo Monte, pois as duas atividades são conflitantes entre si.
Essa ‘aparente’ contradição do IBAMA tem uma explicação. Belo Monte não é uma decisão dos órgãos ambientais nem do governo, mas do Capital, ao qual o governo é subserviente. Essa clareza é importante! Os que se arvoram a levar adiante esse crime anunciado o fazem de forma consciente, para acumulação de capital. Buscar convencê-los do contrário é o mesmo que dizer ao gambá para não mexer na ninhada de ovos, sem expulsá-lo com uma boa sova. Contra a força destruidora do capital somente a força soberana do povo organizado.
Esse é o principal senão o único desafio de todas as entidades e pessoas que desejam, honestamente, defender os bens naturais e os povos da Amazônia: a organização! O acúmulo histórico de alguns segmentos e entidades e sua unidade, o encantamento do povo e a articulação com os parceiros, dentro e fora do Brasil, são elementos decisivos nessa dura, mas importante empreitada.
Enquanto esquenta o debate da barragem de Belo Monte no Brasil e no mundo, com visita de representação indígena a países da Europa, pega fogo, literalmente, numa região rural de Altamira. Seiscentas cabeças de gado foram retiradas em tempo, mas boa parte da área com mais de 15 mil pés de laranja foi destruída. O fogo lambeu 400 ha de terra!
Logo no início do incêndio, ainda pela manhã, a Prefeitura e o Corpo de Bombeiros foram acionados, porém só chegaram depois de quatro horas. E não conseguiram acessar o local pelas más condições das estradas.
Os agricultores, que vinham buscando conter o fogo com seus próprios meios, mas sem sucesso, entraram em desespero e xingaram muito; a polícia foi acionada, um trabalhador quase foi preso. E o fogo, que se iniciara de manhã, varou a tarde e entrou pela noite, apagando depois por sua conta e risco.
*Padre e militante do MAB em missão na Amazônia.
quinta-feira, 6 de outubro de 2011
domingo, 2 de outubro de 2011
Quebrando mitos - nós brasileiros trabalhamos muito.
Pochmann: Pobres que trabalham e estudam têm jornada maior que operários do século XIX
por Fernando César Oliveira, site da UFPR, O economista Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), classificou ontem à noite em Curitiba como “heróis” os brasileiros de famílias pobres capazes de conciliar o trabalho com o estudo.
“No Brasil, dificilmente um filho de rico começa a trabalhar antes de terminar a graduação ou, em alguns casos, até mesmo a pós-graduação”, observou Pochmann.
“Os brasileiros pobres que estudam e trabalham são verdadeiros heróis. Submetem-se a uma jornada de até 16 horas diárias, oito de trabalho, quatro de estudo e outras quatro de deslocamento. Isso é mais do que os operários no século XIX.”
O presidente do Ipea foi um dos palestrantes na abertura da terceira edição do Seminário Sociologia & Política, ao lado da professora Celi Scalon (UFRJ), no Teatro da Reitoria da UFPR. “Repensando Desigualdades em Novos Contextos” é o tema geral do seminário. Promovido pelos programas de pós-graduação em Sociologia e em Ciência Política da instituição, o evento termina nesta quarta-feira (28).
Pochmann lembrou que o Brasil levou cem anos, desde a proclamação da República, em 1889, para universalizar o acesso das crianças e adolescentes ao ensino fundamental. “Mas esse acesso foi condicionado ao não crescimento dos recursos da educação, que permaneceram em torno de 4,1% ou 4,3% do PIB. Sem ampliar os recursos, aumentamos as vagas com a queda da qualidade do ensino.”
Essa universalização do ensino fundamental, no entanto, não significa que 100% dos brasileiros em idade escolar estejam estudando. Segundo dados apresentados pelo dirigente do Ipea, ainda existem 400 mil brasileiros com até 14 anos fora da escola. Se essa faixa etária for estendida para 16 anos, a cifra salta para 3,8 milhões de pessoas.
“A cada dez brasileiros, um é analfabeto. E ainda temos cerca de 45% analfabetos funcionais. É muito difícil fazer valer a democracia com esse cenário.”
Em sua fala, Marcio Pochmann também abordou temas como a redução da taxa de fecundidade das mulheres brasileiras, o crescimento da população idosa, o monopólio das corporações privadas transnacionais e a concentração da propriedade da terra.
“O Brasil não fez uma reforma agrária, não democratizou o acesso à terra. Temos uma estrutura fundiária mais concentrada do que em 1920, com o agravante de que parte dela está nas mãos de estrangeiros”, afirmou o economista. “De um lado, 40 mil proprietários rurais são donos de 50% da terra agriculturável do país, e elegem de 100 a 120 deputados federais. De outro, 14 milhões trabalhadores rurais, os agricultores familiares, elegem apenas de seis a dez deputados.”
Para Marcio Pochmann, a desigualdade é um produto do subdesenvolvimento. “Não que os países desenvolvidos não tenham desigualdade, mas não de forma tão escandalosa.”
Nem revolucionário, nem reformista
Segundo o presidente do Ipea, a participação dos 10% mais ricos no estoque da riqueza brasileira não mudou nos últimos três séculos. Permanece estacionada na faixa percentual em torno de 70 a 75%.
“Somos um país de cultura autoritária, com 500 anos de história e menos de 50 anos de vivência democrática. O Brasil não é um país reformista e muito menos revolucionário”, sentencia Pochmann. “A baixa tradição de uma cultura partidária capaz de construir convergências nacionais nos subordina a interesses outros que não os da maioria da população.”
Marcio Pochmann afirmou que os ricos não pagam impostos no Brasil. “Quem tem carro, paga IPVA. Quem tem lancha, avião ou helicóptero, não paga nada. E o ITR [Imposto Territorial Rural] é só pra inglês ver”, exemplificou. “Quem paga imposto no Brasil são basicamente os pobres.”
Um estudo do Ipea teria demonstrado que os moradores de favelas pagam proporcionalmente mais IPTU do que os brasileiros que vivem em mansões. “Quem menos paga é quem mais reclama de imposto. Tanto que impostômetro foi feito no centro rico de São Paulo.”
Pochmann observa que o tema das desigualdes não gera manifestações, não gera tensão. “Não há greve em relação às desigualdades.”
Trabalho imaterial
Na avaliação de Márcio Pochmann, a sociedade mundial está cada vez mais assentada no que ele chama de “trabalho imaterial”, associado a novas tecnologias de informação, como aparelhos celulares e microcomputadores. “O trabalhador está cada vez mais levando trabalho pra casa.”
Essa sociedade do trabalho imaterial, conforme o dirigente do Ipea, pressupõe uma sociedade que tenha como principal ativo o conhecimento. “Pressupõe o estudo durante a vida toda, e o ensino superior apenas como piso.”
Pochmann criticou ainda a forma como a comunidade acadêmica tem tratado o tema das desigualdades no país. “O tema tem sido apresentado de forma muito descritiva e pouco de enfrentamento real e efetivo. Em que medida a discussão está ligada a intervenções efetivas, a políticas que possam de fato alterar a realidade como a conhecemos?”
Na avaliação dele, a fragmentação e a especialização das ciências sociais aprofundariam o quadro de alienação sobre o problema das desigualdades.
“As pesquisas não mudam a realidade. Quem muda a realidade é o homem. Agora, as pesquisas, as teorias mudam o homem. Se mudarem o homem, ele muda a realidade. Nada nos impede de fazer isso, a não ser o medo, o medo de ousar.”
por Fernando César Oliveira, site da UFPR, O economista Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), classificou ontem à noite em Curitiba como “heróis” os brasileiros de famílias pobres capazes de conciliar o trabalho com o estudo.
“No Brasil, dificilmente um filho de rico começa a trabalhar antes de terminar a graduação ou, em alguns casos, até mesmo a pós-graduação”, observou Pochmann.
“Os brasileiros pobres que estudam e trabalham são verdadeiros heróis. Submetem-se a uma jornada de até 16 horas diárias, oito de trabalho, quatro de estudo e outras quatro de deslocamento. Isso é mais do que os operários no século XIX.”
O presidente do Ipea foi um dos palestrantes na abertura da terceira edição do Seminário Sociologia & Política, ao lado da professora Celi Scalon (UFRJ), no Teatro da Reitoria da UFPR. “Repensando Desigualdades em Novos Contextos” é o tema geral do seminário. Promovido pelos programas de pós-graduação em Sociologia e em Ciência Política da instituição, o evento termina nesta quarta-feira (28).
Pochmann lembrou que o Brasil levou cem anos, desde a proclamação da República, em 1889, para universalizar o acesso das crianças e adolescentes ao ensino fundamental. “Mas esse acesso foi condicionado ao não crescimento dos recursos da educação, que permaneceram em torno de 4,1% ou 4,3% do PIB. Sem ampliar os recursos, aumentamos as vagas com a queda da qualidade do ensino.”
Essa universalização do ensino fundamental, no entanto, não significa que 100% dos brasileiros em idade escolar estejam estudando. Segundo dados apresentados pelo dirigente do Ipea, ainda existem 400 mil brasileiros com até 14 anos fora da escola. Se essa faixa etária for estendida para 16 anos, a cifra salta para 3,8 milhões de pessoas.
“A cada dez brasileiros, um é analfabeto. E ainda temos cerca de 45% analfabetos funcionais. É muito difícil fazer valer a democracia com esse cenário.”
Em sua fala, Marcio Pochmann também abordou temas como a redução da taxa de fecundidade das mulheres brasileiras, o crescimento da população idosa, o monopólio das corporações privadas transnacionais e a concentração da propriedade da terra.
“O Brasil não fez uma reforma agrária, não democratizou o acesso à terra. Temos uma estrutura fundiária mais concentrada do que em 1920, com o agravante de que parte dela está nas mãos de estrangeiros”, afirmou o economista. “De um lado, 40 mil proprietários rurais são donos de 50% da terra agriculturável do país, e elegem de 100 a 120 deputados federais. De outro, 14 milhões trabalhadores rurais, os agricultores familiares, elegem apenas de seis a dez deputados.”
Para Marcio Pochmann, a desigualdade é um produto do subdesenvolvimento. “Não que os países desenvolvidos não tenham desigualdade, mas não de forma tão escandalosa.”
Nem revolucionário, nem reformista
Segundo o presidente do Ipea, a participação dos 10% mais ricos no estoque da riqueza brasileira não mudou nos últimos três séculos. Permanece estacionada na faixa percentual em torno de 70 a 75%.
“Somos um país de cultura autoritária, com 500 anos de história e menos de 50 anos de vivência democrática. O Brasil não é um país reformista e muito menos revolucionário”, sentencia Pochmann. “A baixa tradição de uma cultura partidária capaz de construir convergências nacionais nos subordina a interesses outros que não os da maioria da população.”
Marcio Pochmann afirmou que os ricos não pagam impostos no Brasil. “Quem tem carro, paga IPVA. Quem tem lancha, avião ou helicóptero, não paga nada. E o ITR [Imposto Territorial Rural] é só pra inglês ver”, exemplificou. “Quem paga imposto no Brasil são basicamente os pobres.”
Um estudo do Ipea teria demonstrado que os moradores de favelas pagam proporcionalmente mais IPTU do que os brasileiros que vivem em mansões. “Quem menos paga é quem mais reclama de imposto. Tanto que impostômetro foi feito no centro rico de São Paulo.”
Pochmann observa que o tema das desigualdes não gera manifestações, não gera tensão. “Não há greve em relação às desigualdades.”
Trabalho imaterial
Na avaliação de Márcio Pochmann, a sociedade mundial está cada vez mais assentada no que ele chama de “trabalho imaterial”, associado a novas tecnologias de informação, como aparelhos celulares e microcomputadores. “O trabalhador está cada vez mais levando trabalho pra casa.”
Essa sociedade do trabalho imaterial, conforme o dirigente do Ipea, pressupõe uma sociedade que tenha como principal ativo o conhecimento. “Pressupõe o estudo durante a vida toda, e o ensino superior apenas como piso.”
Pochmann criticou ainda a forma como a comunidade acadêmica tem tratado o tema das desigualdades no país. “O tema tem sido apresentado de forma muito descritiva e pouco de enfrentamento real e efetivo. Em que medida a discussão está ligada a intervenções efetivas, a políticas que possam de fato alterar a realidade como a conhecemos?”
Na avaliação dele, a fragmentação e a especialização das ciências sociais aprofundariam o quadro de alienação sobre o problema das desigualdades.
“As pesquisas não mudam a realidade. Quem muda a realidade é o homem. Agora, as pesquisas, as teorias mudam o homem. Se mudarem o homem, ele muda a realidade. Nada nos impede de fazer isso, a não ser o medo, o medo de ousar.”
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