Delze Laureano e Gilvander Moreira
Esse homem vai morrer - Um faroeste caboclo. Esse é o nome do documentário de 75 minutos, dirigido por Emilio Gallo, e exibido com a presença do diretor, no dia 27 de junho de 2011, na Associação do Ministério Público Estadual de Minas Gerais em Belo Horizonte. Ao final, houve um debate com os presentes que puderam constatar como o tema é antigo e ao mesmo tempo atual. É antigo, porque lá se vão 25 anos do assassinato de João Canuto, militante da reforma agrária, filiado ao PCB, e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, no estado do Pará. Canuto foi morto em 18 de dezembro de 1985, com 18 tiros. O fato mobilizou artistas, políticos e entidades internacionais, à época, para proteger outros líderes sindicais, religiosos e advogados ameaçados de morte na região. E, é tema atual porque no dia 24 de maio deste ano, José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, líderes extrativistas, considerados sucessores de Chico Mendes, foram executados na cidade de Nova Ipixuna, no sudeste do Pará, cidade a 390 quilômetros de Belém. Além desses, dados registrados pelos agentes da Comissão Pastoral da Terra – CPT - mostram muitas ameaças e mortes de trabalhadores e lideranças rurais em todas as regiões do Brasil.
A sinopse do filme é a seguinte: “Um sonho atraiu vários brasileiros ao município de Rio Maria, no Sul do Pará, e se transformou numa sentença: 14 pessoas marcadas para morrer. Cartas denunciando os conflitos foram escritas para juízes, ministros e até para presidentes da república, mas nenhuma providência foi tomada.” O documentário, produzido com pequeno orçamento e, segundo o diretor, sem o apoio financeiro de empresas privadas e do governo, tornou-se possível, após cinco anos, porque houve determinação em fazê-lo e porque os fatos não recomendavam ser novamente adiado o lançamento. Feliz da vida ele disse categórico: “O filme, no segundo dia após o lançamento já estava na internet. Ótimo, baixem e multipliquem ao máximo!”
O diretor poderia ter seguido por diversos caminhos na narrativa. Nos moldes de Mel Gibson poderia mostrar muito sangue, pois gente morta, e com morte violenta, não faltou. Poderia ter optado pelo melodrama. Sobram cemitérios, crianças, viúvas e idosos, que parecem errantes naquelas terras sem lei. Contudo, Gallo preferiu mostrar, com os poucos recursos de que dispunha, e o fez magistralmente, pelo viés da insegurança dos marcados para morrer. Fez jus ao título: “Esse homem vai morrer!” O protagonista, Padre Ricardo Rezende, voltou a Rio Maria para reencontrar as pessoas e para contar as reais causas da violência. E ele não para. Ao contar o ocorrido caminha sempre, deixando-nos inquietos. (Melhor seria sentar e nos tranqüilizar dizendo que tudo não passa de uma narrativa...) Ali campeia a lei do silêncio. Quem vê e/ou ouve, se falar, morre. “Todo mundo sabe quem está marcado para morrer”, sabe até quem ardilosamente manda matar, pois fazem até consórcio de fazendeiros para financiar jagunços. Quem ousa desafiar a lei do silêncio pode ser o próximo eliminado.
Vendo tudo aquilo, perguntamo-nos: por que as pessoas não fogem desses lugares? Vendo o filme podemos responder. Porque muitas vezes a bestialização da violência é tamanha que nos falta perna para sair do lugar. E as lideranças, como podem sair e deixar o povo desamparado nas garras dos mandantes e jagunços? Decisão difícil. Nós mesmos ficamos plantados (chapados, como disse Gallo) na cadeira diante da tela.
Assim, o movimento de câmera, as falas dos sobreviventes e as imagens escolhidas pelo diretor embaralham a nossa vista. As pessoas caminhando - feito penitentes – naquele território onde boi vale muito mais que gente, totalmente desprotegidas, produzem em nós a sensação de absoluta fragilidade, incerteza quanto ao que poderá acontecer no momento seguinte. São rostos que parecem não mais caber na tela, tiros que podem estourar os nossos ouvidos a cada minuto.
Vale a pena conferir esse documentário. O desprendimento do diretor e dos artistas, especialmente Dira Paes consagrada atriz e militante dos direitos humanos, que emprestaram crédito ao trabalho é a esperança de mudar essa realidade que parece não ter fim. Parabéns ao diretor Emílio Gallo e a todos os que trabalharam para que esse documentário viesse a público. Simples e certeiro.
Fechando bem a noite, representantes da CPT lançaram, em Belo Horizonte, o Livro Conflitos no Campo Brasil 2010. Os dados estão aí para mostrar como a luta pelo território, invadido pelas multinacionais e pela velha oligarquia agrária, é sempre cruel para com os pobres da terra.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 29 de junho de 2011
quarta-feira, 29 de junho de 2011
terça-feira, 28 de junho de 2011
Artigo/Denúncia - Professor Virgilio Mattos
A LUTA DOS PROFESSORES MUNICIPAIS DE IPATINGA É A LUTA DE TODOS NÓS
Virgílio de Mattos
Denunciem, por favor.
Assim começava a mensagem que recebi de um dos professores municipais de Ipatinga, na tarde de hoje.
Fez-me lembrar e voltar no tempo em que os pedidos de denúncias das condições de presos políticos – só viria a saber que todo preso é preso político algum tempo depois – vinham também em conta-gotas, em homeopáticas doses, em pedaços de papel com letra miúda, entre susto e espanto – que são coisas absolutamente distintas se você está dentro ou fora do cárcere – eram contrabandeados para o mundo todo.
A voz de Liliana Polena irradiava “QUI RÁDIO TIRANA”, como depois Franco Battiato colocou no sucesso Voglio vederti danzare, mas isso eram outros tempos e outros os pedidos que começavam com o pedido entre o desesperado e o esperançoso.
Denunciem, por favor.
Pensamos, aquele que me envia a denúncia e eu, que vivemos em tempos de liberdade democrática, mas como ter certeza se em Ipatinga, a próxima e próspera cidade do Vale do Aço, os professores municipais estão em greve desde o dia 08 de junho, reivindicando nada mais do que a imediata implantação do PSPN (Piso Nacional para os Professores).
Como último recurso, e às vezes são obrigados os trabalhadores a tomarem desde logo os últimos recursos como instrumento de luta, na última 5ª feira, segue a denúncia, “os professores tomaram a ante-sala do prefeito e lá se encontram desde então. De sexta para sábado, o prefeito mandou que o ar condicionado fosse ligado ao máximo e não permite que se chegue àqueles que lá se encontram cobertores e colchonetes”.
Prossegue a informação:
“Estamos nesta luta desde 2008, mas conseguimos que o prefeito assinasse um acordo e o transformamos em lei municipal no ano passado, mas este Governo tem descumprido sistematicamente esta e outras leis municipais.
Precisamos que isto se torne de conhecimento nacional.
Agradeço a solidariedade na divulgação.”
Faço a minha parte, J.G., enquanto ouço vozes. Nada grave, nada grave, são as vozes que crescem e que dizem: TRABALHADOR, ESCUTA, SUA LUTA É A NOSSA LUTA!
Ou mais comedidamente dizer com Rodolfo Walsh: Reproduza esta informação. Faça-a circular por todos os meios a seu alcance: a mão, por mimeógrafo, oralmente. Mande cópias a seus amigos: nove a cada dez estão esperando. Milhões querem ser informados. O terror se baseia na incomunicabilidade. Rompa esse isolamento. Volte a sentir a satisfação moral de um ato de liberdade. Derrote o terror. Faça circular esta informação.
Virgílio de Mattos
Denunciem, por favor.
Assim começava a mensagem que recebi de um dos professores municipais de Ipatinga, na tarde de hoje.
Fez-me lembrar e voltar no tempo em que os pedidos de denúncias das condições de presos políticos – só viria a saber que todo preso é preso político algum tempo depois – vinham também em conta-gotas, em homeopáticas doses, em pedaços de papel com letra miúda, entre susto e espanto – que são coisas absolutamente distintas se você está dentro ou fora do cárcere – eram contrabandeados para o mundo todo.
A voz de Liliana Polena irradiava “QUI RÁDIO TIRANA”, como depois Franco Battiato colocou no sucesso Voglio vederti danzare, mas isso eram outros tempos e outros os pedidos que começavam com o pedido entre o desesperado e o esperançoso.
Denunciem, por favor.
Pensamos, aquele que me envia a denúncia e eu, que vivemos em tempos de liberdade democrática, mas como ter certeza se em Ipatinga, a próxima e próspera cidade do Vale do Aço, os professores municipais estão em greve desde o dia 08 de junho, reivindicando nada mais do que a imediata implantação do PSPN (Piso Nacional para os Professores).
Como último recurso, e às vezes são obrigados os trabalhadores a tomarem desde logo os últimos recursos como instrumento de luta, na última 5ª feira, segue a denúncia, “os professores tomaram a ante-sala do prefeito e lá se encontram desde então. De sexta para sábado, o prefeito mandou que o ar condicionado fosse ligado ao máximo e não permite que se chegue àqueles que lá se encontram cobertores e colchonetes”.
Prossegue a informação:
“Estamos nesta luta desde 2008, mas conseguimos que o prefeito assinasse um acordo e o transformamos em lei municipal no ano passado, mas este Governo tem descumprido sistematicamente esta e outras leis municipais.
Precisamos que isto se torne de conhecimento nacional.
Agradeço a solidariedade na divulgação.”
Faço a minha parte, J.G., enquanto ouço vozes. Nada grave, nada grave, são as vozes que crescem e que dizem: TRABALHADOR, ESCUTA, SUA LUTA É A NOSSA LUTA!
Ou mais comedidamente dizer com Rodolfo Walsh: Reproduza esta informação. Faça-a circular por todos os meios a seu alcance: a mão, por mimeógrafo, oralmente. Mande cópias a seus amigos: nove a cada dez estão esperando. Milhões querem ser informados. O terror se baseia na incomunicabilidade. Rompa esse isolamento. Volte a sentir a satisfação moral de um ato de liberdade. Derrote o terror. Faça circular esta informação.
domingo, 26 de junho de 2011
Concentração de terras, uma injustiça que se perpetua no Brasil.
Delze dos Santos Laureano
Macunaíma passou mais de seis anos sem falar. Quando o incitavam, exclamava: — Ai! Que preguiça!... (Mário de Andrade).
Também fico assim, com preguiça, quando tenho de explicar de novo a mesma coisa. Todavia, é recorrente! Quando ouvimos a notícia da ocupação de terras por famílias que lutam por moradia ou trabalho, vem a mesma ladainha do senso comum: “O motivo é justo, o que não podemos apoiar é a violência, é a invasão de terra que já tem dono!”
Ora, violência são a falta de informação e o preconceito. A grande mídia criminaliza os movimentos sociais que lutam pela posse da terra e os trabalhadores desinformados repetem o discurso das elites. Invasores são os grandes proprietários, rurais e urbanos, pois todo latifúndio resultou de privilégios obtidos junto ao poder do Estado ou da omissão dos governantes em exigir o cumprimento das leis, inclusive o pagamento dos impostos. Na melhor das hipóteses essas terras são fruto de herança, cuja transmissão ocorre com insignificante tributação, o que perpetua a desigualdade entre as pessoas e encobre os favorecimentos anteriores. Desafio alguém que me prove ter comprado e mantido um latifúndio nos moldes legais com dinheiro ganho honestamente e sem o favorecimento público.
Precisamos conhecer melhor a história de ocupação do nosso território e a forma como as mesmas elites controlam as propriedades no nosso país. Assim vamos entender a razão porque, mesmo sendo o Brasil um país de dimensão continental, os pobres não têm acesso a terra para trabalhar e morar.
A história da ocupação do nosso território determinou o modelo de concentração das terras existentes. Somente em 1850, já no Segundo Império, foi que tivemos a primeira lei brasileira a tratar do direito de propriedade. A conseqüência disso foi o cerco da terra que, infelizmente, passou a ser adquirida somente mediante compra. Se por um lado essa Lei 601/1850 exigiu a medição e o registro das terras - decisão justa -, por outro impediu aos trabalhadores o acesso à posse, especialmente os ex-escravos.
A exigência da medição e registro foi sistematicamente ignorada pelos grandes proprietários e governantes. Porém, isto tem uma conseqüência legal. Quem não registrou as outorgas de Sesmarias caiu em comisso, ou seja, perdeu o direito sobre elas que passaram a ser terras devolutas, que são terras públicas, destinadas, nos termos da Constituição de 1988, para a política agrícola e de reforma agrária.
Mas, vamos imaginar que o proprietário tenha medido e registrado essas terras. Assim, toda a extensão, desde a confirmação do registro, deveria estar cultivada ou aplicada a alguma atividade agrária, cumprindo o que determina a lei. O cumprimento da função social é uma exigência legal existente desde a promulgação do Estatuto da Terra, Lei 4.504/64. Nos dias atuais, a Constituição Federal, no Art. 186, diz que todo imóvel deve, simultaneamente, cumprir as obrigações legais quanto ao uso nos aspectos econômico, ambiental e social. A sanção para o descumprimento dessas obrigações é a desapropriação do imóvel para fins de reforma agrária.
Necessário aqui ressaltar que mesmo a exigência de cumprimento do aspecto econômico, que é a produtividade do imóvel, tem sido sistematicamente negligenciada pelo Governo Federal, sob pressão da bancada ruralista no Congresso Nacional. Os índices utilizados são ainda da década de 1970, o que permite a manutenção de atividades de baixa produtividade como é o caso da pecuária de extensão, uma das mais atrasadas de exploração agropecuária do país por ocupar extensas áreas, causando sérios danos ambientais e exercendo enorme pressão sobre as áreas de floresta nativa para a abertura de novas pastagens. Além de tudo isso gera poucos postos de trabalho.
Os demais incisos do Art. 186 também são abusivamente desrespeitados. Inúmeros são os conflitos agrários que resultam na morte de trabalhadores. Os criadores de gado e as empresas do agronegócio fustigam as comunidades tradicionais, como ribeirinhos, extrativistas, indígenas e quilombolas. A degradação ambiental e o trabalho escravo são sistematicamente ignorados pelo Poder Judiciário - como motivo para a desapropriação -, que normalmente sacraliza o direito de propriedade ou a produtividade do imóvel. Esvazia-se deste modo os demais aspectos da função social da terra.
É bom refrescar na memória também que imensas áreas foram doadas às empresas nas décadas de 1960 a 1980. Os militares, utilizando-se do mecanismo de renúncia fiscal, incentivaram grandes empresas estrangeiras a aplicarem no desenvolvimento rural para contrapor à reforma agrária. O desenvolvimentismo fez com que empresas como a Volkswagen, uma fabricante de automóveis, passasse a ser dona de grandes áreas na Amazônia. Em 1988, o legislador constituinte estabeleceu, no Art. 51 do ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias -, um prazo de três anos para a revisão de todas as alienações e concessões de terras públicas acima de três mil hectares realizadas naquele período. Contudo, isso nunca foi feito.
Estudos mostram ter ocorrido durante a ditadura militar o maior êxodo rural já registrado, quando mais de 40% da população rural foi expulsa do campo para as periferias das grandes cidades. A propriedade da terra ficou ainda mais concentrada, enquanto uma massa de trabalhadores sem qualificação para o trabalho urbano passou a disputar um posto de trabalho e moradia nas grandes cidades.
Na teoria jurídica, a propriedade compõe-se de dois aspectos, um subjetivo que é o registro do imóvel no Cartório, e o outro objetivo que é fato do uso. Este, comprovado por meio do cumprimento da função social. O critério objetivo é o modo de o proprietário retribuir à sociedade o benefício legal que lhe permite o uso exclusivo do bem. Juridicamente, então, um imóvel que não cumpre a função social está vazio. Ninguém tem a sua posse. Como conseqüência lógica não pode o Poder Judiciário, apenas com base no registro, mandar reintegrar na posse quem está descumprindo a lei. Por estas razões não podemos dizer que são invasores os trabalhadores que lutam por esse direito. Invasores são aqueles que possuindo apenas o registro intitulam-se legítimos proprietários e ainda por cima, descumprindo a função social, reivindicam em juízo a proteção possessória.
Até quando vamos fechar os olhos para a concentração de terras, essa que é uma das maiores fontes de injustiça social no Brasil? Temos de dar um basta a essa realidade que se perpetua desde a colônia. Precisamos apoiar a luta pela democratização da terra. Precisamos defender e apoiar os que lutam pelo direito fundamental da moradia. Precisamos lutar ao lado dos camponeses que produzem os alimentos que vêm para a nossa mesa, protegendo o meio ambiente e fazendo a justiça que traz a paz social.
Nova Lima, MG, Brasil, 25 de junho de 2011.
Macunaíma passou mais de seis anos sem falar. Quando o incitavam, exclamava: — Ai! Que preguiça!... (Mário de Andrade).
Também fico assim, com preguiça, quando tenho de explicar de novo a mesma coisa. Todavia, é recorrente! Quando ouvimos a notícia da ocupação de terras por famílias que lutam por moradia ou trabalho, vem a mesma ladainha do senso comum: “O motivo é justo, o que não podemos apoiar é a violência, é a invasão de terra que já tem dono!”
Ora, violência são a falta de informação e o preconceito. A grande mídia criminaliza os movimentos sociais que lutam pela posse da terra e os trabalhadores desinformados repetem o discurso das elites. Invasores são os grandes proprietários, rurais e urbanos, pois todo latifúndio resultou de privilégios obtidos junto ao poder do Estado ou da omissão dos governantes em exigir o cumprimento das leis, inclusive o pagamento dos impostos. Na melhor das hipóteses essas terras são fruto de herança, cuja transmissão ocorre com insignificante tributação, o que perpetua a desigualdade entre as pessoas e encobre os favorecimentos anteriores. Desafio alguém que me prove ter comprado e mantido um latifúndio nos moldes legais com dinheiro ganho honestamente e sem o favorecimento público.
Precisamos conhecer melhor a história de ocupação do nosso território e a forma como as mesmas elites controlam as propriedades no nosso país. Assim vamos entender a razão porque, mesmo sendo o Brasil um país de dimensão continental, os pobres não têm acesso a terra para trabalhar e morar.
A história da ocupação do nosso território determinou o modelo de concentração das terras existentes. Somente em 1850, já no Segundo Império, foi que tivemos a primeira lei brasileira a tratar do direito de propriedade. A conseqüência disso foi o cerco da terra que, infelizmente, passou a ser adquirida somente mediante compra. Se por um lado essa Lei 601/1850 exigiu a medição e o registro das terras - decisão justa -, por outro impediu aos trabalhadores o acesso à posse, especialmente os ex-escravos.
A exigência da medição e registro foi sistematicamente ignorada pelos grandes proprietários e governantes. Porém, isto tem uma conseqüência legal. Quem não registrou as outorgas de Sesmarias caiu em comisso, ou seja, perdeu o direito sobre elas que passaram a ser terras devolutas, que são terras públicas, destinadas, nos termos da Constituição de 1988, para a política agrícola e de reforma agrária.
Mas, vamos imaginar que o proprietário tenha medido e registrado essas terras. Assim, toda a extensão, desde a confirmação do registro, deveria estar cultivada ou aplicada a alguma atividade agrária, cumprindo o que determina a lei. O cumprimento da função social é uma exigência legal existente desde a promulgação do Estatuto da Terra, Lei 4.504/64. Nos dias atuais, a Constituição Federal, no Art. 186, diz que todo imóvel deve, simultaneamente, cumprir as obrigações legais quanto ao uso nos aspectos econômico, ambiental e social. A sanção para o descumprimento dessas obrigações é a desapropriação do imóvel para fins de reforma agrária.
Necessário aqui ressaltar que mesmo a exigência de cumprimento do aspecto econômico, que é a produtividade do imóvel, tem sido sistematicamente negligenciada pelo Governo Federal, sob pressão da bancada ruralista no Congresso Nacional. Os índices utilizados são ainda da década de 1970, o que permite a manutenção de atividades de baixa produtividade como é o caso da pecuária de extensão, uma das mais atrasadas de exploração agropecuária do país por ocupar extensas áreas, causando sérios danos ambientais e exercendo enorme pressão sobre as áreas de floresta nativa para a abertura de novas pastagens. Além de tudo isso gera poucos postos de trabalho.
Os demais incisos do Art. 186 também são abusivamente desrespeitados. Inúmeros são os conflitos agrários que resultam na morte de trabalhadores. Os criadores de gado e as empresas do agronegócio fustigam as comunidades tradicionais, como ribeirinhos, extrativistas, indígenas e quilombolas. A degradação ambiental e o trabalho escravo são sistematicamente ignorados pelo Poder Judiciário - como motivo para a desapropriação -, que normalmente sacraliza o direito de propriedade ou a produtividade do imóvel. Esvazia-se deste modo os demais aspectos da função social da terra.
É bom refrescar na memória também que imensas áreas foram doadas às empresas nas décadas de 1960 a 1980. Os militares, utilizando-se do mecanismo de renúncia fiscal, incentivaram grandes empresas estrangeiras a aplicarem no desenvolvimento rural para contrapor à reforma agrária. O desenvolvimentismo fez com que empresas como a Volkswagen, uma fabricante de automóveis, passasse a ser dona de grandes áreas na Amazônia. Em 1988, o legislador constituinte estabeleceu, no Art. 51 do ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias -, um prazo de três anos para a revisão de todas as alienações e concessões de terras públicas acima de três mil hectares realizadas naquele período. Contudo, isso nunca foi feito.
Estudos mostram ter ocorrido durante a ditadura militar o maior êxodo rural já registrado, quando mais de 40% da população rural foi expulsa do campo para as periferias das grandes cidades. A propriedade da terra ficou ainda mais concentrada, enquanto uma massa de trabalhadores sem qualificação para o trabalho urbano passou a disputar um posto de trabalho e moradia nas grandes cidades.
Na teoria jurídica, a propriedade compõe-se de dois aspectos, um subjetivo que é o registro do imóvel no Cartório, e o outro objetivo que é fato do uso. Este, comprovado por meio do cumprimento da função social. O critério objetivo é o modo de o proprietário retribuir à sociedade o benefício legal que lhe permite o uso exclusivo do bem. Juridicamente, então, um imóvel que não cumpre a função social está vazio. Ninguém tem a sua posse. Como conseqüência lógica não pode o Poder Judiciário, apenas com base no registro, mandar reintegrar na posse quem está descumprindo a lei. Por estas razões não podemos dizer que são invasores os trabalhadores que lutam por esse direito. Invasores são aqueles que possuindo apenas o registro intitulam-se legítimos proprietários e ainda por cima, descumprindo a função social, reivindicam em juízo a proteção possessória.
Até quando vamos fechar os olhos para a concentração de terras, essa que é uma das maiores fontes de injustiça social no Brasil? Temos de dar um basta a essa realidade que se perpetua desde a colônia. Precisamos apoiar a luta pela democratização da terra. Precisamos defender e apoiar os que lutam pelo direito fundamental da moradia. Precisamos lutar ao lado dos camponeses que produzem os alimentos que vêm para a nossa mesa, protegendo o meio ambiente e fazendo a justiça que traz a paz social.
Nova Lima, MG, Brasil, 25 de junho de 2011.
segunda-feira, 20 de junho de 2011
A luta dos italianos contra a privatização da água - Carta de Silvia Parodi de Gênova
Queridos amig@s brasileir@s,
desculpem minha ausência, mas nessa ultima época fiquei muito ocupada com uma luta que foi muito grande aqui na Itália: a luta pela agua publica. Vou tentar explicar com um texto para vocês o que aconteceu nos últimos meses, que foi realmente extraordinario!
Há alguns anos o nosso governo super corrupto de Berlusconi fez uma lei para privatizar todos os serviços hídricos, de transporte publico local e de gestão do lixo. Essa lei continua o percurso que os governos tanto de esquerda quanto de direita levam para a frente há muito anos, querendo privatizar os serviços públicos.
Então o ano passado, em cada cidade começou uma mobilização popular e recolhemos assinaturas para pedir um referendum (plebiscito popular) contra essa lei e contra a mercantilização da agua. Em 3 meses recolhemos mais de 1.400.000 assinaturas, o numero mais alto na historia da Itália, e finalmente a semana passada o povo todo foi chamado a votar para decidir sobre privatização da agua, sobre energia nuclear, e sobre privilegio do chefe de governo e ministros em poder não ser chamados nas aulas de tribunal para julgamentos.
Toda essa luta foi levada a frente por conta dos movimentos sociais, dos voluntários da sociedade civil, o Fórum dos movimentos pela agua cresceu muito e jà tem comité de agua em cada cidade da Itália. Os partidos políticos nos obstaculavam ou gozavam de nos. Até o maior partido da esquerda (que já levou para a frente a privatização nos anos passado) não ajudou, mas sò falava contra de nos.
A mídia, escrava do poder, nunca falava dos assuntos, tivemos que não se organizar e fazer nossa campanha de informação através de internet, nas ruas, nos povoados, com encontros, eventos, teatro, foi um esforço imenso, mas que nos fez encontrar as pessoas de uma maneira direta, pessoal. Os voluntários cresciam de numero, no ultimo mês a mobilização crescia e cada um fazia sua parte para repassar as informações.
Vocês tem que saber que aqui na Itália o referendum tem validade somente se vai votar mais de 50% da população e que aqui na Itália votar não é obrigação. Nos últimos 16 anos nenhum referendum tinha conseguido chegar a ser valido, também porque a pululação esta muito enjoada da politica e muitas pessoas não votam mais.
Mas vamos voltar a o que aconteceu no ultimo mês, porque para nos isso tem o sabor de um milagre. A sociedade civil, que parecia adormecida, começou a se mobilizar cada dia mais, em favor da agua publica, contra a energia nuclear e para una justiça igual para todos.
Se mobilizaram os jovens que usam internet, todos se unimos, pessoas de diferentes ideas politicas, de todos os lados e experiencias, unidos, porque a agua não tem color, a agua é vida para todos.
Um mês antes das votações começou se perceber que o consenso popular estava crescendo e alguns partidos mudaram suas falações, e começaram apoiar a luta. Essa mudança foi mais uma vez o tentativo da mala politica de se apropriar de uma luta que estava se prospectando vitoriosa.
Mesmo assim nos estávamos com medo de não conseguir chegar a 50%, porque como já disse, a mídia e o governo estavam todos contra nos, fazendo um escandaloso boicote da informação e convidando o povo para não ir votar.
Mas chegou o dia que vai entrar na historia do nosso país. Dia 13 e 14 de junho a população começou encher as urnas já de manha cedo, jovens e velhinhos, famílias, até doentes e estudantes de outras cidades que pediam para votar, maior parte da igreja apoiou a luta, missionários fizeram vigília de oração, papa Bendito falou contra energia nuclear, os artistas faziam shows gratuitos para mobilizar, os bares prometiam bebidas para quem ia fazer seu dever de votar, cada um inventava uma coisa para convencer os outros.
E afinal vencemos: 57% dos italianos foram as urnas , 95% deles votou para cancelar as leis injustas do governo. A noite as praças se encheram de pessoas fazendo festa, pela primeira vez cheias de jovens animados, sorrisos, abraços, a sensação que as coisas a partir de hoje vão mudar para melhor.
Foi maravilhoso descobrir que não precisamos mais da mídia tradicional, a liberdade de internet substituiu a escravidão da televisão, foi maravilhoso descobrir que os jovens não estãoo todos anestesiados e desinteressados, o enjôo não é devido à politica, mas aos políticos! Quando a politica é feita pelo povo, falando de assuntos concretos como agua, saúde, segurança, o povo entende e se mobiliza.
Tem um vento novo soprando na Itália, um ar limpo e fresco como uma cachoeira de agua transparente.
Nestes anos ganhamos força com as lutas vitoriosas de alguns povos da América Latina, hoje estamos felizes de oferecer nossa vitoria a todos os povos que ainda lutam pelo direito à agua. A agua é nossa mãe, nessa irmandade avançamos juntos para um mundo melhor.
Abraços
Silvia Parodi - comité “Agua Publica” de Genova – Italia.
desculpem minha ausência, mas nessa ultima época fiquei muito ocupada com uma luta que foi muito grande aqui na Itália: a luta pela agua publica. Vou tentar explicar com um texto para vocês o que aconteceu nos últimos meses, que foi realmente extraordinario!
Há alguns anos o nosso governo super corrupto de Berlusconi fez uma lei para privatizar todos os serviços hídricos, de transporte publico local e de gestão do lixo. Essa lei continua o percurso que os governos tanto de esquerda quanto de direita levam para a frente há muito anos, querendo privatizar os serviços públicos.
Então o ano passado, em cada cidade começou uma mobilização popular e recolhemos assinaturas para pedir um referendum (plebiscito popular) contra essa lei e contra a mercantilização da agua. Em 3 meses recolhemos mais de 1.400.000 assinaturas, o numero mais alto na historia da Itália, e finalmente a semana passada o povo todo foi chamado a votar para decidir sobre privatização da agua, sobre energia nuclear, e sobre privilegio do chefe de governo e ministros em poder não ser chamados nas aulas de tribunal para julgamentos.
Toda essa luta foi levada a frente por conta dos movimentos sociais, dos voluntários da sociedade civil, o Fórum dos movimentos pela agua cresceu muito e jà tem comité de agua em cada cidade da Itália. Os partidos políticos nos obstaculavam ou gozavam de nos. Até o maior partido da esquerda (que já levou para a frente a privatização nos anos passado) não ajudou, mas sò falava contra de nos.
A mídia, escrava do poder, nunca falava dos assuntos, tivemos que não se organizar e fazer nossa campanha de informação através de internet, nas ruas, nos povoados, com encontros, eventos, teatro, foi um esforço imenso, mas que nos fez encontrar as pessoas de uma maneira direta, pessoal. Os voluntários cresciam de numero, no ultimo mês a mobilização crescia e cada um fazia sua parte para repassar as informações.
Vocês tem que saber que aqui na Itália o referendum tem validade somente se vai votar mais de 50% da população e que aqui na Itália votar não é obrigação. Nos últimos 16 anos nenhum referendum tinha conseguido chegar a ser valido, também porque a pululação esta muito enjoada da politica e muitas pessoas não votam mais.
Mas vamos voltar a o que aconteceu no ultimo mês, porque para nos isso tem o sabor de um milagre. A sociedade civil, que parecia adormecida, começou a se mobilizar cada dia mais, em favor da agua publica, contra a energia nuclear e para una justiça igual para todos.
Se mobilizaram os jovens que usam internet, todos se unimos, pessoas de diferentes ideas politicas, de todos os lados e experiencias, unidos, porque a agua não tem color, a agua é vida para todos.
Um mês antes das votações começou se perceber que o consenso popular estava crescendo e alguns partidos mudaram suas falações, e começaram apoiar a luta. Essa mudança foi mais uma vez o tentativo da mala politica de se apropriar de uma luta que estava se prospectando vitoriosa.
Mesmo assim nos estávamos com medo de não conseguir chegar a 50%, porque como já disse, a mídia e o governo estavam todos contra nos, fazendo um escandaloso boicote da informação e convidando o povo para não ir votar.
Mas chegou o dia que vai entrar na historia do nosso país. Dia 13 e 14 de junho a população começou encher as urnas já de manha cedo, jovens e velhinhos, famílias, até doentes e estudantes de outras cidades que pediam para votar, maior parte da igreja apoiou a luta, missionários fizeram vigília de oração, papa Bendito falou contra energia nuclear, os artistas faziam shows gratuitos para mobilizar, os bares prometiam bebidas para quem ia fazer seu dever de votar, cada um inventava uma coisa para convencer os outros.
E afinal vencemos: 57% dos italianos foram as urnas , 95% deles votou para cancelar as leis injustas do governo. A noite as praças se encheram de pessoas fazendo festa, pela primeira vez cheias de jovens animados, sorrisos, abraços, a sensação que as coisas a partir de hoje vão mudar para melhor.
Foi maravilhoso descobrir que não precisamos mais da mídia tradicional, a liberdade de internet substituiu a escravidão da televisão, foi maravilhoso descobrir que os jovens não estãoo todos anestesiados e desinteressados, o enjôo não é devido à politica, mas aos políticos! Quando a politica é feita pelo povo, falando de assuntos concretos como agua, saúde, segurança, o povo entende e se mobiliza.
Tem um vento novo soprando na Itália, um ar limpo e fresco como uma cachoeira de agua transparente.
Nestes anos ganhamos força com as lutas vitoriosas de alguns povos da América Latina, hoje estamos felizes de oferecer nossa vitoria a todos os povos que ainda lutam pelo direito à agua. A agua é nossa mãe, nessa irmandade avançamos juntos para um mundo melhor.
Abraços
Silvia Parodi - comité “Agua Publica” de Genova – Italia.
domingo, 19 de junho de 2011
Artigo - Preço de Sangue
Preço de Sangue
Delze dos Santos Laureano
Parte do que foi a paixão e ressurreição de Jesus Cristo está no Evangelho de Mateus, capítulo 27. Conta o evangelista que, desde a manhã, todos os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo convocaram o Sinédrio contra Jesus a fim de o condenarem à morte. Depois de amarrarem Jesus entregaram-no ao governador Pilatos.
Detenho-me especialmente nos versículos de 3 a 7. Judas, chamado no texto de traidor, ao ver que Jesus fora condenado, sentiu remorso, e foi devolver as trinta moedas de prata aos chefes dos sacerdotes e anciãos dizendo: “Pequei, entregando à morte sangue inocente.” Eles responderam: “E o que nós temos com isso? O problema é seu.” Judas jogou as moedas no Templo e saiu, indo enforcar-se. Recolhendo as moedas, os chefes dos sacerdotes disseram: “É contra a Lei colocá-las no tesouro do Templo, porque é preço de sangue.” Então discutiram em conselho e com o dinheiro compraram o Campo do Oleiro, para aí fazer o cemitério dos estrangeiros.
O texto é da década de 80 do primeiro século da era cristã. Lá se vão quase 2.000 anos. Fico aqui pensando com os meus botões. Sangue inocente ainda mancha as moedas recolhidas pelos chefes do poder. O uso do dinheiro sujo é amenizado, na Bíblia, para a compra da terra de cemitério para estrangeiros, hoje, para projetos socioculturais e de educação ambiental. Contudo, são os que detêm o poder os responsáveis pelo sangue nas moedas e os mesmos que decidem acerca do seu uso.
Michel Chossudovsky, pesquisador canadense, no livro “A Globalização da Pobreza”, demonstrou com clareza como a riqueza mundial é canalizada para os mesmos grupos econômicos internacionais – Clube de Londres e Clube de Paris -, protegidos pelas políticas do FMI - Fundo Monetário Internacional – e do BIRD – Banco Mundial. Os recursos originários dos países pobres, mesmo quando vêm da exploração sexual, do comércio ilegal de entorpecentes, da exploração criminosa dos recursos naturais nos territórios das comunidades tradicionais servem para honrar os contratos internacionais, mesmo causando tanto sofrimento e a morte do planeta.
Não é diferente com a nossa riqueza interna no Brasil. O capitalismo hegemônico tornou-se mais forte (dogmático) que uma religião. Tudo pode ser debatido politicamente, menos as velhas receitas da teoria econômica conservadora. O Estado prioriza ações para o crescimento econômico – PAC - e para a realização dos megaeventos como a Copa de 2014, transferindo para as entidades da sociedade civil – especialmente as ONGs – grande parte da responsabilidade dos serviços sociais que precisam amortecer os efeitos perversos do sistema econômico. E assim, por detrás dos recursos que financiam os projetos sociais estão as mesmas empresas multinacionais causadoras dos danos: mineradoras, grandes construtoras, bancos, empresas do agronegócio. Elas que estão presentes no mundo inteiro, elegem nos países os seus representantes e mantêm suas sedes nas economias centrais do planeta. Toda grande empresa tem um braço social: instituto, ONG, fundação. Afinal, empresa que não mantém uma fachada de responsabilidade social e de sustentabilidade ambiental fica feia no retrato, perde clientes e faturamento nos países desenvolvidos.
Mas as moedas de sangue não vêm somente da iniciativa privada, vêm também do Estado. Originam-se dos orçamentos públicos, moeda de troca nas reeleições. Quem pode incluir obras no orçamento, quem pode aprovar renúncias fiscais (em nome da geração de empregos e renda), ou dar destinação legal (como é exemplo a Lei Rouanet) às receitas públicas, acaba se beneficiando desse lugar privilegiado, impedindo a renovação da representação política democrática pela via eleitoral. Manipulando os recursos públicos, subtraídos da população pobre (espoliada com a maior carga tributária do mundo e servida com os piores meios de transporte, com educação pública de fazer vergonha, com moradia inapropriada) favorecem as mesmas elites que se regozijam com as benesses do poder, deliberando com exclusividade acerca das riquezas nacionais que deveriam ser bens de uso comum do povo, como terra, água, florestas, biodiversidade.
Nós, meras peças dessa engrenagem, individualmente tentamos superar limites. Às vezes acreditamos no sucesso pessoal. Fazemos um esforço hercúleo para entender as tramas do mercado que tanto exige de nós. Outras vezes caímos na armadilha do moralismo, do arrependimento, talvez resquício de uma tradição judaico/cristã. Imaginamos que as nossas ações pessoais (como fechar torneiras, tomar banhos frios e rápidos, ou transformar lixo em artesanato) são as saídas para se resolver as mazelas provocadas por esse sistema que ignora a vida, visando somente ao lucro.
Em meio ao cansaço ou ao arrependimento ouvimos a voz dos senhores do Sinédrio dizendo. “O que nós temos com isso? Não reclamem das tarifas altas, do alto custo dos pedágios, dos serviços públicos de água, de energia ou de comunicação. Não lamentem as mazelas sociais e a violência.” Como Pilatos, lavam as mãos dizendo: “Apenas aprovamos os projetos que vocês apresentam. O Estado não dispõe de recursos. Precisamos fazer parcerias com o setor empresarial para sermos eficientes.” Outros senhores, os juízes, quando reclamamos que somente os pobres ficam nas cadeias, repetem em coro: “O que nós temos com isso? O problema é de vocês. Não são os seus representantes que fazem as leis? Estamos apenas cumprindo o que a sociedade manda.” Assim, condenam impiedosamente à prisão os acusados dos pequenos delitos (contra o patrimônio), retirando das famílias pobres a melhor força de trabalho, perpetuando o círculo da marginalidade. Já os governadores dizem: “Nós não condenamos ninguém. São os juízes que condenam. Para cumprir as ordens judiciais e a lei precisamos construir mais penitenciárias, precisamos comprar mais viaturas de polícia. Precisamos por mais policiais nas ruas.”
Judas, segundo o relato bíblico, iludido pelos donos do poder, trai os companheiros e se sente culpado. Arrependido, devolve ao Templo as moedas sujas de sangue e, envergonhado, suicida-se. Já os donos do poder político, ontem e hoje, não se arrependem nunca. Arrogantes, determinam os fatos que mancham de sangue as moedas, para depois decidir “moralmente” o que fazer com elas.
Na nossa cultura ocidental, imprescindível interpretar de forma libertadora a Bíblia para compreender a lógica do sistema político. Somente assim nos damos conta de que vivemos e legitimamos o mesmo sistema de sempre. A história apenas se repete, como magistralmente ensinou Marx: "a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Quem não tem as mãos sujas de sangue que atire a primeira pedra. Quem tem ouvidos, ouça!
Nova Lima (MG) Brasil, 19 de junho de 2011.
Delze dos Santos Laureano é advogada, professora universitária de Direito Agrário, mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG, doutoranda em Direito Público Internacional pela PUC/Minas.
E-mail: delzesantos@hotmail.com. www.delzesantoslaureano.blogspot.com
Delze dos Santos Laureano
Parte do que foi a paixão e ressurreição de Jesus Cristo está no Evangelho de Mateus, capítulo 27. Conta o evangelista que, desde a manhã, todos os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo convocaram o Sinédrio contra Jesus a fim de o condenarem à morte. Depois de amarrarem Jesus entregaram-no ao governador Pilatos.
Detenho-me especialmente nos versículos de 3 a 7. Judas, chamado no texto de traidor, ao ver que Jesus fora condenado, sentiu remorso, e foi devolver as trinta moedas de prata aos chefes dos sacerdotes e anciãos dizendo: “Pequei, entregando à morte sangue inocente.” Eles responderam: “E o que nós temos com isso? O problema é seu.” Judas jogou as moedas no Templo e saiu, indo enforcar-se. Recolhendo as moedas, os chefes dos sacerdotes disseram: “É contra a Lei colocá-las no tesouro do Templo, porque é preço de sangue.” Então discutiram em conselho e com o dinheiro compraram o Campo do Oleiro, para aí fazer o cemitério dos estrangeiros.
O texto é da década de 80 do primeiro século da era cristã. Lá se vão quase 2.000 anos. Fico aqui pensando com os meus botões. Sangue inocente ainda mancha as moedas recolhidas pelos chefes do poder. O uso do dinheiro sujo é amenizado, na Bíblia, para a compra da terra de cemitério para estrangeiros, hoje, para projetos socioculturais e de educação ambiental. Contudo, são os que detêm o poder os responsáveis pelo sangue nas moedas e os mesmos que decidem acerca do seu uso.
Michel Chossudovsky, pesquisador canadense, no livro “A Globalização da Pobreza”, demonstrou com clareza como a riqueza mundial é canalizada para os mesmos grupos econômicos internacionais – Clube de Londres e Clube de Paris -, protegidos pelas políticas do FMI - Fundo Monetário Internacional – e do BIRD – Banco Mundial. Os recursos originários dos países pobres, mesmo quando vêm da exploração sexual, do comércio ilegal de entorpecentes, da exploração criminosa dos recursos naturais nos territórios das comunidades tradicionais servem para honrar os contratos internacionais, mesmo causando tanto sofrimento e a morte do planeta.
Não é diferente com a nossa riqueza interna no Brasil. O capitalismo hegemônico tornou-se mais forte (dogmático) que uma religião. Tudo pode ser debatido politicamente, menos as velhas receitas da teoria econômica conservadora. O Estado prioriza ações para o crescimento econômico – PAC - e para a realização dos megaeventos como a Copa de 2014, transferindo para as entidades da sociedade civil – especialmente as ONGs – grande parte da responsabilidade dos serviços sociais que precisam amortecer os efeitos perversos do sistema econômico. E assim, por detrás dos recursos que financiam os projetos sociais estão as mesmas empresas multinacionais causadoras dos danos: mineradoras, grandes construtoras, bancos, empresas do agronegócio. Elas que estão presentes no mundo inteiro, elegem nos países os seus representantes e mantêm suas sedes nas economias centrais do planeta. Toda grande empresa tem um braço social: instituto, ONG, fundação. Afinal, empresa que não mantém uma fachada de responsabilidade social e de sustentabilidade ambiental fica feia no retrato, perde clientes e faturamento nos países desenvolvidos.
Mas as moedas de sangue não vêm somente da iniciativa privada, vêm também do Estado. Originam-se dos orçamentos públicos, moeda de troca nas reeleições. Quem pode incluir obras no orçamento, quem pode aprovar renúncias fiscais (em nome da geração de empregos e renda), ou dar destinação legal (como é exemplo a Lei Rouanet) às receitas públicas, acaba se beneficiando desse lugar privilegiado, impedindo a renovação da representação política democrática pela via eleitoral. Manipulando os recursos públicos, subtraídos da população pobre (espoliada com a maior carga tributária do mundo e servida com os piores meios de transporte, com educação pública de fazer vergonha, com moradia inapropriada) favorecem as mesmas elites que se regozijam com as benesses do poder, deliberando com exclusividade acerca das riquezas nacionais que deveriam ser bens de uso comum do povo, como terra, água, florestas, biodiversidade.
Nós, meras peças dessa engrenagem, individualmente tentamos superar limites. Às vezes acreditamos no sucesso pessoal. Fazemos um esforço hercúleo para entender as tramas do mercado que tanto exige de nós. Outras vezes caímos na armadilha do moralismo, do arrependimento, talvez resquício de uma tradição judaico/cristã. Imaginamos que as nossas ações pessoais (como fechar torneiras, tomar banhos frios e rápidos, ou transformar lixo em artesanato) são as saídas para se resolver as mazelas provocadas por esse sistema que ignora a vida, visando somente ao lucro.
Em meio ao cansaço ou ao arrependimento ouvimos a voz dos senhores do Sinédrio dizendo. “O que nós temos com isso? Não reclamem das tarifas altas, do alto custo dos pedágios, dos serviços públicos de água, de energia ou de comunicação. Não lamentem as mazelas sociais e a violência.” Como Pilatos, lavam as mãos dizendo: “Apenas aprovamos os projetos que vocês apresentam. O Estado não dispõe de recursos. Precisamos fazer parcerias com o setor empresarial para sermos eficientes.” Outros senhores, os juízes, quando reclamamos que somente os pobres ficam nas cadeias, repetem em coro: “O que nós temos com isso? O problema é de vocês. Não são os seus representantes que fazem as leis? Estamos apenas cumprindo o que a sociedade manda.” Assim, condenam impiedosamente à prisão os acusados dos pequenos delitos (contra o patrimônio), retirando das famílias pobres a melhor força de trabalho, perpetuando o círculo da marginalidade. Já os governadores dizem: “Nós não condenamos ninguém. São os juízes que condenam. Para cumprir as ordens judiciais e a lei precisamos construir mais penitenciárias, precisamos comprar mais viaturas de polícia. Precisamos por mais policiais nas ruas.”
Judas, segundo o relato bíblico, iludido pelos donos do poder, trai os companheiros e se sente culpado. Arrependido, devolve ao Templo as moedas sujas de sangue e, envergonhado, suicida-se. Já os donos do poder político, ontem e hoje, não se arrependem nunca. Arrogantes, determinam os fatos que mancham de sangue as moedas, para depois decidir “moralmente” o que fazer com elas.
Na nossa cultura ocidental, imprescindível interpretar de forma libertadora a Bíblia para compreender a lógica do sistema político. Somente assim nos damos conta de que vivemos e legitimamos o mesmo sistema de sempre. A história apenas se repete, como magistralmente ensinou Marx: "a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Quem não tem as mãos sujas de sangue que atire a primeira pedra. Quem tem ouvidos, ouça!
Nova Lima (MG) Brasil, 19 de junho de 2011.
Delze dos Santos Laureano é advogada, professora universitária de Direito Agrário, mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG, doutoranda em Direito Público Internacional pela PUC/Minas.
E-mail: delzesantos@hotmail.com. www.delzesantoslaureano.blogspot.com
sexta-feira, 10 de junho de 2011
Boas relações são construídas.
Boas relações são construídas.
Hoje me lembrei de um filme: Parente é Serpente, do diretor Mário Monicelli, 1992. A sinopse é a seguinte: “Durante a tradicionalíssima festa de Natal da família Colapietro, a alegria é interrompida quando a matriarca declara que ela e seu marido estão muito velhos para ficarem sozinhos naquela enorme casa. Comunica, então, uma decisão irrevogável: vai pôr a casa à venda e morar com um dos filhos. Mas, é claro, nenhum deles quer dar abrigo aos pais, e o que era para ser apenas mais uma ceia de Natal acaba se tornando uma grande confusão, de conseqüências tragicômicas.”
Realmente às vezes dá vontade que família seja apenas retrato em cima da lareira. Mas será que esse problema é sempre com a nossa família? Acredito que não. Vejo como são difíceis as relações interpessoais. Freud tentou explicar: é o mal estar na civilização. De todas as dores a dor que mais dói é aquela causada pelo outro. Os ressentimentos ficam martelando, atazanando a nossa vida. Não conseguindo mudar tudo o que está ruim de uma só vez, o que podemos fazer é desencadear um processo novo capaz de mudar com o tempo aquela aura ruim que paira sobre as nossas cabeças. Ou seja, a velha receita: sair do círculo vicioso e entrar no círculo virtuoso.
O filme me veio, ao convidar, por telefone, uma pessoa não muito próxima para uma festa. Em lágrimas, ela aproveitou a oportunidade para me contar os problemas que está vivendo em família. Agradeceu o convite, mas disse que não conseguiria sair de casa. Contou-me que há algum tempo seu filho não fala mais com ela e que com esse rompimento outros problemas surgiram. Não está mais convivendo bem com o marido e nos finais de semana para ter um pouco de serenidade faz uso de medicamentos. Falou-me ainda do esforço que tem feito para manter os filhos nas escolas e a administração da pequena empresa que contribui para a renda familiar. Sente-se profundamente incompreendida.
Ouvi comovida e tive vontade de receitar para toda aquela família um remédio que o meu amigo terapeuta (de mentirinha) um dia me contou. Um mago foi procurado por uma jovem senhora que pedia a ele um veneno para matar a sogra, mas de forma que ninguém ficasse sabendo. É que, sendo o marido filho único, a sogra viúva tinha ido morar com eles. Ela afirmava odiar e ser odiada pela sogra e temendo que ela pudesse ainda viver muito tempo, destruindo o seu casamento, resolvera por fim àquela situação. O mago preparou a porção de veneno que consumiria a vida da sogra lentamente e sem deixar vestígios. Contudo recomendou: “Esse veneno só faz efeito se você ao tempo que adicioná-lo na comida da sua sogra tratá-la muito bem”. Deve preparar a comida para ela com carinho, sentar-se à mesa com ela para tomar as refeições, procurar passear com ela em lugares agradáveis, pedir a ela alguns favores, assim ninguém desconfiará e ela tomará toda a dose necessária para morrer.
Passados alguns dias a nora começou a ficar extremamente apreensiva sentindo que ao contrário do que pensava a sogra gostava dela e ambas sentiam prazer com a companhia da outra. Começou a ver na sogra uma amiga e mãe. Arrependida, foi novamente ao mago e, desesperada, pede a ele um antídoto para impedir que a sogra morresse envenenada, pois não poderia mais ser feliz sentindo-se culpada pela morte de uma pessoa tão boa. Então o mago lhe diz: “Não precisa antídoto. Eu não fiz veneno nenhum, apenas fiz você ver, pela sua própria experiência, que somente convivendo e tratando bem as pessoas é que elas nos amam e nos tratam bem.”
Preciso contar essa estória da carochinha para a pessoa que está angustiada achando que não é amada pela família. Devo contá-la também para quem não consegue perdoar os erros de parentes ou amigos e os pune com indiferença, chamando para si mais indiferença. Preciso colar essa mensagem na cabeceira da minha cama e ler todos os dias para me lembrar que relações boas são construídas, um pouquinho, todos os dias, seja na nossa casa, seja na nossa vida.
Nova Lima, MG, Brasil, 10 de junho de 2011.
Hoje me lembrei de um filme: Parente é Serpente, do diretor Mário Monicelli, 1992. A sinopse é a seguinte: “Durante a tradicionalíssima festa de Natal da família Colapietro, a alegria é interrompida quando a matriarca declara que ela e seu marido estão muito velhos para ficarem sozinhos naquela enorme casa. Comunica, então, uma decisão irrevogável: vai pôr a casa à venda e morar com um dos filhos. Mas, é claro, nenhum deles quer dar abrigo aos pais, e o que era para ser apenas mais uma ceia de Natal acaba se tornando uma grande confusão, de conseqüências tragicômicas.”
Realmente às vezes dá vontade que família seja apenas retrato em cima da lareira. Mas será que esse problema é sempre com a nossa família? Acredito que não. Vejo como são difíceis as relações interpessoais. Freud tentou explicar: é o mal estar na civilização. De todas as dores a dor que mais dói é aquela causada pelo outro. Os ressentimentos ficam martelando, atazanando a nossa vida. Não conseguindo mudar tudo o que está ruim de uma só vez, o que podemos fazer é desencadear um processo novo capaz de mudar com o tempo aquela aura ruim que paira sobre as nossas cabeças. Ou seja, a velha receita: sair do círculo vicioso e entrar no círculo virtuoso.
O filme me veio, ao convidar, por telefone, uma pessoa não muito próxima para uma festa. Em lágrimas, ela aproveitou a oportunidade para me contar os problemas que está vivendo em família. Agradeceu o convite, mas disse que não conseguiria sair de casa. Contou-me que há algum tempo seu filho não fala mais com ela e que com esse rompimento outros problemas surgiram. Não está mais convivendo bem com o marido e nos finais de semana para ter um pouco de serenidade faz uso de medicamentos. Falou-me ainda do esforço que tem feito para manter os filhos nas escolas e a administração da pequena empresa que contribui para a renda familiar. Sente-se profundamente incompreendida.
Ouvi comovida e tive vontade de receitar para toda aquela família um remédio que o meu amigo terapeuta (de mentirinha) um dia me contou. Um mago foi procurado por uma jovem senhora que pedia a ele um veneno para matar a sogra, mas de forma que ninguém ficasse sabendo. É que, sendo o marido filho único, a sogra viúva tinha ido morar com eles. Ela afirmava odiar e ser odiada pela sogra e temendo que ela pudesse ainda viver muito tempo, destruindo o seu casamento, resolvera por fim àquela situação. O mago preparou a porção de veneno que consumiria a vida da sogra lentamente e sem deixar vestígios. Contudo recomendou: “Esse veneno só faz efeito se você ao tempo que adicioná-lo na comida da sua sogra tratá-la muito bem”. Deve preparar a comida para ela com carinho, sentar-se à mesa com ela para tomar as refeições, procurar passear com ela em lugares agradáveis, pedir a ela alguns favores, assim ninguém desconfiará e ela tomará toda a dose necessária para morrer.
Passados alguns dias a nora começou a ficar extremamente apreensiva sentindo que ao contrário do que pensava a sogra gostava dela e ambas sentiam prazer com a companhia da outra. Começou a ver na sogra uma amiga e mãe. Arrependida, foi novamente ao mago e, desesperada, pede a ele um antídoto para impedir que a sogra morresse envenenada, pois não poderia mais ser feliz sentindo-se culpada pela morte de uma pessoa tão boa. Então o mago lhe diz: “Não precisa antídoto. Eu não fiz veneno nenhum, apenas fiz você ver, pela sua própria experiência, que somente convivendo e tratando bem as pessoas é que elas nos amam e nos tratam bem.”
Preciso contar essa estória da carochinha para a pessoa que está angustiada achando que não é amada pela família. Devo contá-la também para quem não consegue perdoar os erros de parentes ou amigos e os pune com indiferença, chamando para si mais indiferença. Preciso colar essa mensagem na cabeceira da minha cama e ler todos os dias para me lembrar que relações boas são construídas, um pouquinho, todos os dias, seja na nossa casa, seja na nossa vida.
Nova Lima, MG, Brasil, 10 de junho de 2011.
quarta-feira, 8 de junho de 2011
Marias - diversidade que liberta!
Marias – diversidade que liberta!
Delze dos Santos Laureano
“Quem traz no corpo a marca Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria”
Milton Nascimento e Fernando Brant
Penso que a primeira ideia que nos vem à mente quando pensamos na mulher hoje é a da mulher urbana, trabalhadora, realizada e feliz porque se viu livre do domínio que a condenava à inferioridade mantida por tantos séculos. Até mesmo a obrigação de gerar filhos tornou-se uma opção. Todavia, não podemos ser ingênuas acreditando existir um tipo ideal de mulher, como se ele representasse de fato todas as mulheres de hoje, de todas as idades e com os diversos problemas que enfrentam, seja nas relações afetivas, na família, no trabalho ou no meio social e político em que vivem.
Mesmo considerando que são algumas dessas mulheres urbanas - essas que se fizeram autônomas por terem renda própria e por se desvencilharem dos tabus e dos preconceitos morais - as que melhor representam a emancipação feminina, não podemos esquecer as que ainda vivem sob o jugo dos pais, dos companheiros , dos patrões e do mercado, nesta nossa sociedade patriarcal e machista que fez tudo virar mercadoria por meio da exploração capitalista desmedida.
Penso nas mulheres que mesmo tendo conquistado a emancipação frente ao machismo estão sobrecarregadas com o ônus da própria emancipação. Hoje somos trabalhadoras com dupla, ou até de trilha jornada. Somos as vítimas das doenças antes típicas dos homens, somos as que carregam o peso do provimento exclusivo da prole pelo simples fato de podermos romper com as relações afetivas sem afeto.
Olhando para o passado, vemos que foi a partir de 1960 que o movimento de libertação das mulheres desencadeou-se como parte integrante de um movimento cultural da juventude. No final do século XX, um número expressivo de mulheres entrou no mercado de trabalho, chegando mesmo a ser, em determinados setores, como nas universidades, em número maior do que os homens. A economia capitalista, baseada no estímulo e na criação incessante de novas e artificiais necessidades, foi a que mais contribuiu para o crescimento da participação das mulheres no mercado de trabalho, de modo a que viessem a ser uma fonte suplementar de rendimentos, necessária para a realização dos sonhos da sociedade de consumo. Nos nossos dias os quadros femininos passaram a atingir o topo da carreira em algumas empresas.
A história mostra, todavia, que as mulheres sempre trabalharam, apesar de por muito tempo não ter sido reconhecido o valor econômico do trabalho feminino. Nas sociedades primitivas, por exemplo, as mulheres executavam as tarefas agrícolas e domésticas. No neolítico as mulheres criaram a agricultura e, por isso, começaram a esmerar-se na arte da hospitalidade, do cuidado da casa e do quintal, enquanto os homens incumbiam-se da caça e da pesca, iniciando o processo cultural de ser o homem forte, dominador e predador e a mulher a que tem de cuidar do lar e da prole.
A partir da Revolução Industrial e nas situações extremas, como no período das duas grandes guerras foi que as mulheres passaram a trabalhar massiçamente nas fábricas tendo de deixar por longo período as suas casas. É de se notar que em todos esses momentos elas não deixaram de assumir as tarefas domésticas. Para justificar a dupla jornada, essa “realidade” foi mascarada por uma cultura que valoriza a liberdade e o bem-estar individual. O trabalho doméstico passou a ser visto como uma forma de submissão ao homem. A ideologia dominante forjou o reconhecimento social do trabalho feminino atrelado a ideias como o direito a uma “vida autônoma” e à independência econômica.
Os próprios homens tiveram de reconhecer a legitimidade do trabalho assalariado feminino como instrumento de autonomia e realização pessoal, a despeito de muitas vezes ser cristalino para todos que nem mesmo sob o aspecto econômico é vantajosa a venda de toda a força de trabalho da família no mercado. Quando ambos os cônjuges estão fora do lar, e por muitas horas nas empresas, há irremediavelmente uma perda na qualidade de vida de todos. Pais e filhos ficam expostos à vulnerabilidade de uma sociedade que não tem mais tempo para conviver, para cultivar a espiritualidade, para a participação na vida em sociedade ou até mesmo para usufruir dos bens adquiridos pelo trabalho. A inserção acrítica da mulher no mercado reafirma na prática a voz que inconscientemente profere: “Patrões, explorem-nos como vocês exploram os nossos maridos.”
Os problemas tornam-se mais visíveis entre as famílias pobres que não dispõem de creches, de escolas que cuidem efetivamente do desenvolvimento integral das crianças e acabam pagando um alto preço por isso. Deparamo-nos cotidianamente com notícias dos jovens pobres a serviço do narcotráfico, das adolescentes grávidas sem a mínima condição para ampararem suas famílias, desamparadas elas mesmas desde tenra idade. Perpetua-se deste modo o círculo vicioso da pobreza, da exclusão e da violência em todas as suas formas.
Percebemos neste início de século que ainda estão distantes as conquistas que possam significar emancipação feminina efetiva. O discurso hegemônico faz acreditar que todas podemos viver bem, desde que lutemos individualmente para isso. É o mito do sucesso pessoal que nos leva para os cantos da irracionalidade da vida. Cada uma das mulheres busca a conquista do lugar social para si e para a família seguindo o receituário do mercado.
Vemos que na busca de um sonho inatingível empenhamos nossas forças sem ter muita consciência de que, na prática, estamos é contribuindo para a manutenção de um sistema opressor, que absolutiza o lucro e afasta ou pisoteia pessoas. Esse mesmo sistema que deixa o rastro das mazelas sociais e ambientais que nos assustam na atualidade: as catástrofes climáticas, a destruição da cultura e dos bens comunitários, esses sim que sustentam os laços de fraternidade e os traços de cultura local.
Nós as mulheres, submissas a esse sistema que tudo coisifica, deixamos também os nossos rastros de poluição, com os nossos carros, com o consumo excessivo de mercadorias que “embelezam” exigindo e roubando o nosso tempo com limpeza e cuidados desnecessários, fazendo desaparecer grande parte do nosso orçamento mediante o uso crescente e excessivo de energia, de água, de todo tipo de objetos e trabalho humano.
Sem perceber, exploramos trabalhadoras/es e biodiversidade quando excedemos no uso de cosméticos, de produtos de higiene pessoal, de artigos de luxo, ou com tanta parafernália para manter a aparência. Ou simplesmente para ficar em dia com as inovações tecnológicas que nos afastam dos serviços que poderiam até minimizar o estresse diário, como o preparo dos alimentos ou costurar e bordar uma roupa. As necessidades humanas são manipuladas pelos meios de comunicação de massa. Nós, presas a esse modo de vida ocidental, construído sob a lógica de um poder dominado por homens e legitimado por mulheres “modelos”, tornamo-nos subservientes ao mercado. Somos, nós mesmas usadas para a compra e venda de todo tipo de mercadoria: carros, apartamentos, cigarros, remédios, cavalos, votos... Vemo-nos reduzidas a essa engrenagem que exclui comunidades inteiras como as do Xingu que lutaram obstinadamente contra um mega projeto assassino de tantas vidas. Essas sim que ainda teriam muito a conquistar em seus próprios territórios.
Por isso tento como Vinícius de Moraes pensar nas meninas cegas inexatas, nas mulheres rotas alteradas, nas meninas grávidas antes do tempo, nas mulheres marginalizadas, nas mulheres operárias da tripla jornada, nas mulheres condenadas aos menores salários em moradias desumanas no campo e na cidade. Quero pensar também em nós mesmas, mulheres que conquistamos um lugar no mercado, desperdiçando o melhor da vida: a oportunidade de conviver, de sentir cada momento vivido com as pessoas que amamos.
Precisamos estar todas juntas para não vivermos com essa visão pessimista do mundo, considerando que “quem só vê o lado negativo das coisas acaba encontrando”. A vida nos mostra todos os dias exemplos de mulher que constrói na luta os caminhos contra a opressão. Vemos por todos os lados mulheres que fazem a diferença como pessoas humanas.
Parafraseando o poeta mineiro, Drumond, digo que olho essas minhas companheiras e vejo que apesar de taciturnas, nutrem grandes esperanças. Entre elas considero uma enorme diversidade. Nessa diversidade sinto ser possível brotar uma sociedade em que vivam mulheres, homens, crianças, pessoas de todos os gêneros, de todo tipo e lugar, de todas as idades, fazendo outro mundo possível. No cuidado da vida na e da perspectiva feminina, não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas!
Delze dos Santos Laureano
“Quem traz no corpo a marca Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria”
Milton Nascimento e Fernando Brant
Penso que a primeira ideia que nos vem à mente quando pensamos na mulher hoje é a da mulher urbana, trabalhadora, realizada e feliz porque se viu livre do domínio que a condenava à inferioridade mantida por tantos séculos. Até mesmo a obrigação de gerar filhos tornou-se uma opção. Todavia, não podemos ser ingênuas acreditando existir um tipo ideal de mulher, como se ele representasse de fato todas as mulheres de hoje, de todas as idades e com os diversos problemas que enfrentam, seja nas relações afetivas, na família, no trabalho ou no meio social e político em que vivem.
Mesmo considerando que são algumas dessas mulheres urbanas - essas que se fizeram autônomas por terem renda própria e por se desvencilharem dos tabus e dos preconceitos morais - as que melhor representam a emancipação feminina, não podemos esquecer as que ainda vivem sob o jugo dos pais, dos companheiros , dos patrões e do mercado, nesta nossa sociedade patriarcal e machista que fez tudo virar mercadoria por meio da exploração capitalista desmedida.
Penso nas mulheres que mesmo tendo conquistado a emancipação frente ao machismo estão sobrecarregadas com o ônus da própria emancipação. Hoje somos trabalhadoras com dupla, ou até de trilha jornada. Somos as vítimas das doenças antes típicas dos homens, somos as que carregam o peso do provimento exclusivo da prole pelo simples fato de podermos romper com as relações afetivas sem afeto.
Olhando para o passado, vemos que foi a partir de 1960 que o movimento de libertação das mulheres desencadeou-se como parte integrante de um movimento cultural da juventude. No final do século XX, um número expressivo de mulheres entrou no mercado de trabalho, chegando mesmo a ser, em determinados setores, como nas universidades, em número maior do que os homens. A economia capitalista, baseada no estímulo e na criação incessante de novas e artificiais necessidades, foi a que mais contribuiu para o crescimento da participação das mulheres no mercado de trabalho, de modo a que viessem a ser uma fonte suplementar de rendimentos, necessária para a realização dos sonhos da sociedade de consumo. Nos nossos dias os quadros femininos passaram a atingir o topo da carreira em algumas empresas.
A história mostra, todavia, que as mulheres sempre trabalharam, apesar de por muito tempo não ter sido reconhecido o valor econômico do trabalho feminino. Nas sociedades primitivas, por exemplo, as mulheres executavam as tarefas agrícolas e domésticas. No neolítico as mulheres criaram a agricultura e, por isso, começaram a esmerar-se na arte da hospitalidade, do cuidado da casa e do quintal, enquanto os homens incumbiam-se da caça e da pesca, iniciando o processo cultural de ser o homem forte, dominador e predador e a mulher a que tem de cuidar do lar e da prole.
A partir da Revolução Industrial e nas situações extremas, como no período das duas grandes guerras foi que as mulheres passaram a trabalhar massiçamente nas fábricas tendo de deixar por longo período as suas casas. É de se notar que em todos esses momentos elas não deixaram de assumir as tarefas domésticas. Para justificar a dupla jornada, essa “realidade” foi mascarada por uma cultura que valoriza a liberdade e o bem-estar individual. O trabalho doméstico passou a ser visto como uma forma de submissão ao homem. A ideologia dominante forjou o reconhecimento social do trabalho feminino atrelado a ideias como o direito a uma “vida autônoma” e à independência econômica.
Os próprios homens tiveram de reconhecer a legitimidade do trabalho assalariado feminino como instrumento de autonomia e realização pessoal, a despeito de muitas vezes ser cristalino para todos que nem mesmo sob o aspecto econômico é vantajosa a venda de toda a força de trabalho da família no mercado. Quando ambos os cônjuges estão fora do lar, e por muitas horas nas empresas, há irremediavelmente uma perda na qualidade de vida de todos. Pais e filhos ficam expostos à vulnerabilidade de uma sociedade que não tem mais tempo para conviver, para cultivar a espiritualidade, para a participação na vida em sociedade ou até mesmo para usufruir dos bens adquiridos pelo trabalho. A inserção acrítica da mulher no mercado reafirma na prática a voz que inconscientemente profere: “Patrões, explorem-nos como vocês exploram os nossos maridos.”
Os problemas tornam-se mais visíveis entre as famílias pobres que não dispõem de creches, de escolas que cuidem efetivamente do desenvolvimento integral das crianças e acabam pagando um alto preço por isso. Deparamo-nos cotidianamente com notícias dos jovens pobres a serviço do narcotráfico, das adolescentes grávidas sem a mínima condição para ampararem suas famílias, desamparadas elas mesmas desde tenra idade. Perpetua-se deste modo o círculo vicioso da pobreza, da exclusão e da violência em todas as suas formas.
Percebemos neste início de século que ainda estão distantes as conquistas que possam significar emancipação feminina efetiva. O discurso hegemônico faz acreditar que todas podemos viver bem, desde que lutemos individualmente para isso. É o mito do sucesso pessoal que nos leva para os cantos da irracionalidade da vida. Cada uma das mulheres busca a conquista do lugar social para si e para a família seguindo o receituário do mercado.
Vemos que na busca de um sonho inatingível empenhamos nossas forças sem ter muita consciência de que, na prática, estamos é contribuindo para a manutenção de um sistema opressor, que absolutiza o lucro e afasta ou pisoteia pessoas. Esse mesmo sistema que deixa o rastro das mazelas sociais e ambientais que nos assustam na atualidade: as catástrofes climáticas, a destruição da cultura e dos bens comunitários, esses sim que sustentam os laços de fraternidade e os traços de cultura local.
Nós as mulheres, submissas a esse sistema que tudo coisifica, deixamos também os nossos rastros de poluição, com os nossos carros, com o consumo excessivo de mercadorias que “embelezam” exigindo e roubando o nosso tempo com limpeza e cuidados desnecessários, fazendo desaparecer grande parte do nosso orçamento mediante o uso crescente e excessivo de energia, de água, de todo tipo de objetos e trabalho humano.
Sem perceber, exploramos trabalhadoras/es e biodiversidade quando excedemos no uso de cosméticos, de produtos de higiene pessoal, de artigos de luxo, ou com tanta parafernália para manter a aparência. Ou simplesmente para ficar em dia com as inovações tecnológicas que nos afastam dos serviços que poderiam até minimizar o estresse diário, como o preparo dos alimentos ou costurar e bordar uma roupa. As necessidades humanas são manipuladas pelos meios de comunicação de massa. Nós, presas a esse modo de vida ocidental, construído sob a lógica de um poder dominado por homens e legitimado por mulheres “modelos”, tornamo-nos subservientes ao mercado. Somos, nós mesmas usadas para a compra e venda de todo tipo de mercadoria: carros, apartamentos, cigarros, remédios, cavalos, votos... Vemo-nos reduzidas a essa engrenagem que exclui comunidades inteiras como as do Xingu que lutaram obstinadamente contra um mega projeto assassino de tantas vidas. Essas sim que ainda teriam muito a conquistar em seus próprios territórios.
Por isso tento como Vinícius de Moraes pensar nas meninas cegas inexatas, nas mulheres rotas alteradas, nas meninas grávidas antes do tempo, nas mulheres marginalizadas, nas mulheres operárias da tripla jornada, nas mulheres condenadas aos menores salários em moradias desumanas no campo e na cidade. Quero pensar também em nós mesmas, mulheres que conquistamos um lugar no mercado, desperdiçando o melhor da vida: a oportunidade de conviver, de sentir cada momento vivido com as pessoas que amamos.
Precisamos estar todas juntas para não vivermos com essa visão pessimista do mundo, considerando que “quem só vê o lado negativo das coisas acaba encontrando”. A vida nos mostra todos os dias exemplos de mulher que constrói na luta os caminhos contra a opressão. Vemos por todos os lados mulheres que fazem a diferença como pessoas humanas.
Parafraseando o poeta mineiro, Drumond, digo que olho essas minhas companheiras e vejo que apesar de taciturnas, nutrem grandes esperanças. Entre elas considero uma enorme diversidade. Nessa diversidade sinto ser possível brotar uma sociedade em que vivam mulheres, homens, crianças, pessoas de todos os gêneros, de todo tipo e lugar, de todas as idades, fazendo outro mundo possível. No cuidado da vida na e da perspectiva feminina, não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas!
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