Uma fábula: o Direito, a moral e os invernos...
Delze dos Santos Laureano
Maio chegou e os ventos frios já se mostraram presentes. Por todos os lados vemos os sinais do inverno que se inicia. Poeira, ar seco, as pessoas espirrando devido às alergias que aumentam nesta época do ano. A vegetação começa a sentir a falta da chuva e já podemos imaginar o início das queimadas para breve, suscetíveis nesses capins secos que restaram após tanta devastação ambiental no campo e nas cidades. Todos os anos esses pavios prestes a explodir nos mantêm alerta ao menor descuido.
Costumo levantar cedo todos os dias. Abro a janela, contemplo o céu azul emoldurado, típico nos meses de inverno. Procuro pelos primeiros raios de sol que, a despeito da friagem da atmosfera, sinalizam o aumento de temperatura ainda pela manhã. Como primeiro ato consciente, agradeço à vida, ao cosmos, aos meus companheiros de jornada neste mundo - pessoas, bichos e plantas -, por me fazerem sentir a vida como um rio. Ela vai seguindo o seu curso contornando obstáculos, mas sempre encontrando pedras e superando-as.
Sinto que devemos agradecer por essas coisas boas e singelas que a vida nos dá todos os dias. Nessa postura positiva acredito ser mais fácil a nossa existência. A duras penas tenho procurado resmungar menos e deixar de lado o medo de enfrentar os desafios. Guardar mágoa e rancor só faz mal para a nossa saúde física, mental e espiritual. Precisamos olhar com mais atenção o que está acontecendo debaixo do nosso nariz.
Todas as quintas-feiras vou pela manhã dar aulas na Escola Superior Dom Helder Câmara. Lá leciono Direito Agrário. Aproveito o percurso de casa até a faculdade para reordenar as ideias, planejar as coisas que tenho de fazer durante o dia, pensar sobre tantos desafios que vão dando significação para a minha vida. Eu estava ainda bastante pensativa com a última notícia de violência contra as pessoas que dormiam na rua, na Pampulha, e que foram envenenados com chumbinho adicionado a cachaça no dia 15 de maio último. Tentava encontrar nos meus pensamentos meios de combater de vez esse tipo de violência brutal contra as pessoas mais marginalizadas na nossa sociedade. Contudo, ao passar de carro pela Savassi, onde está o coração (rico) de Belo Horizonte, um gesto desviou o meu olhar do azul intenso do céu. Perdi o interesse nos agasalhos coloridos das pessoas que atravessavam apressadas as avenidas rumo ao trabalho.
Um senhor, de aproximadamente uns 70 anos, arrumava cuidadosamente o roto cobertor com o qual havia passado a noite. O esmero com o qual fazia as dobras despertou em mim o mais puro sentimento de compaixão ao lembrar que naquela madrugada fria aquele senhor passara ao relento, protegido apenas por um cobertor velho que agora dobrava, com o carinho de um pai que põe o filho no berço. Por baixo do cobertor havia uma colcha dobrada também várias vezes, transformando-se em um fardo possível de ser levado. (Diria o Drumond: Você marcha, José? José, para onde?) O cuidado com a arrumação matinal daquela “casa”, com todos os seus pertences me fez pensar em muitas coisas. O que leva uma pessoa, mesmo vivendo na rua, a ter tanto cuidado com objetos sem valor para nós? Acostumamos a sentir enorme aversão à sujeira das calçadas, a maioria imprópria para pousar o nosso corpo desprotegido, devido ao nosso descuido e à poluição de todo dia. Fico certa que muitos de nós, acostumados com os nossos excessos de limpeza corporal, e dos ambientes domésticos e do trabalho, rejeitaríamos gastar tanto tempo, dispensar tanto cuidado àquela tralha que é usada para se dormir nas calçadas. Até mesmo guardar os panos encardidos que protegeram aquele corpo aviltado pelo sofrimento da vida pelas ruas.
Não vou me esquecer do cuidado daquele senhor ao dobrar o pouco que a sociedade - dita moderna - permitiu que tivesse. O insignificante para nós talvez seja o cordão umbilical que liga aquele idoso à sociedade que o rejeita. Sendo uma amostra dessa sociedade mesma, imagino que não vamos deixar uma boa herança para as próximas gerações. Quando me lembro do olhar ausente daquele senhor de 70 anos - abandonado à própria sorte nas noites frias de inverno em calçadas da grande cidade - penso no quanto temos de agir e fazer para sermos minimamente coerentes com o nosso discurso jurídico e cristão.
Penso que antes de cobrarmos tantas obrigações legais e morais, conforme ensinamos nos nossos cursos de Direito (e pregando mundo afora contra os que bebem cachaça ou que se perdem nas drogas ou na prostituição por absoluta falta de lugar para eles neste nosso mundo), temos o papel de mostrar que o Direito tem sido uma via de mão única. Privilégios para os ricos e rigor desmedido e injusto - com polícia - para os pobres. Olhando apenas para Belo Horizonte podemos citar as diversas injustiças que estão em curso contra as pessoas que não aceitam passivamente a exclusão desmedida: as ameaças de despejo contra as ocupações urbanas, a pressão sobre os trabalhadores que sobrevivem na informalidade; hippies, lavadores de carros, profissionais do sexo, catadores de materiais recicláveis. A violência ronda nas ruas e principalmente nos escritórios onde é negociado o direito à cidade, seja nas disputas pela indústria do lixo, seja nos contratos que favorecem o lucro fácil dos oportunistas que não têm compromisso com a vida em sociedade, daqueles que só pensam na próxima Copa do Mundo. Todos esses que nutrem ódio pelos pobres, considerando-os simplesmente seres inferiores.
Bem nos alerta o grande mestre, Boaventura de Souza Santos, “...os tribunais não foram feitos para julgar para cima, isto é, para julgar os poderosos. Eles foram feitos para julgar os de baixo. As classes populares, durante muito tempo, só tiveram contato com o sistema judicial pela via repressiva, como seus utilizadores forçados.” Assim, para muita gente, a cada manhã, só resta mesmo esse direito fundamental: dobrar o mínimo disponível para permanecer vivo e “ir circulando”...
Belo Horizonte – maio/2011.
domingo, 29 de maio de 2011
quinta-feira, 26 de maio de 2011
Artigos - Todo preconceito é irracional!
Neste artigo procuro mostrar a partir da experiência concreta como os preconceitos são irracionais. Eles ocorrem sem nenhum fundamento lógico da razão.
TODO PRECONCEITO É IRRACIONAL
Buscando o Sentido da Vida
Delze dos Santos Laureano
“Não se deve nunca esgotar de tal modo um assunto, que não se deixe ao leitor
Nada a fazer. Não se trata de fazer ler, mas de fazer pensar.”
Montesquieu
Acredito que todos nós em algum momento da vida sofremos a tentação de nos perguntar qual é o sentido mesmo da vida. Meu pai, brincando, dizia que nós viemos aqui para buscar um terno de roupa. Nascemos nus e vamos embora com a roupa do corpo. Tendo a acreditar, todavia, que vamos levar mais do que o terno de roupa. Cada experiência fica fortemente marcada no nosso corpo e no nosso espírito. Não precisamos ser especialistas para perceber na nossa pele, especialmente na face, as rugas do sorriso, as expressões de raiva, ou os sinais das angústias acumuladas. Somos como as árvores, os nós denunciam tanto a idade quanto o rigor das intempéries e a nossa capacidade de lidar com tudo isso.
A cada dia aprendemos um pouquinho. O computador do corpo registra sem piedade aquilo que somos. Percebo que com o passar do tempo, olhando esses registros aprendemos a deixar de lado os preconceitos para aceitar o que de fato dá sentido à vida. Confesso que até poucos dias atrás achava a cirurgia plástica coisa supérflua, banal. Ficamos assustados com o exagero das cirurgias estéticas no Brasil. Mudei. Comecei a pensar com mais profundidade acerca do tema após ler o livro “Aprendiz do Tempo”, o livro de memórias, de Ivo Pitanguy, cirurgião que trata as pessoas independentemente da condição econômica delas. Conviver com todas as pessoas é o maior legado que afirma ter recebido dos seus pais e o que deixará para os seus filhos.
Para começar, não posso desconsiderar o fato de que vivemos em uma sociedade capitalista. Seria mesmo impossível à cirurgia plástica não sofrer as influências da sociedade de consumo. Não é diferente com as religiões, com a família ou com os sentimentos. Quase tudo está à venda. A promessa é a felicidade imediata, desde que se tenha dinheiro para comprar os produtos no mercado. A família pode ser mais feliz, pode-se estar mais perto de Deus, ou podemos viver em um verdadeiro paraíso aqui na terra, longe de tudo o que nos traz infelicidade: violência urbana, poluição, estresse, depressão, gente diferente. Basta comprar, por exemplo, um determinado imóvel.
Mas volto ao livro. “Aprendiz do Tempo” é uma narrativa bastante interessante. Conta a história de uma vida longa, marcada por desafios, alegrias, muito sucesso, mas, sobretudo, uma capacidade imensa de sentir a dor do outro. Também a humildade de aprender em todos os momentos. Um capítulo especialmente me faz pensar dessa forma, “O incêndio do Circo”, no qual o escritor fala da tragédia ocorrida no Grã Circo Norte-Americano, em 17 de dezembro de 1961, na cidade de Niterói, Rio de Janeiro. Ele era ainda um jovem cirurgião, mas já conhecia o valor da cirurgia reparadora tendo estudado em Cincinnati, nos Estados Unidos, no Hospital Bethesda.
Começando o capítulo, Ivo Pitanguy faz uma auto-análise: “Jamais me lamento. Não me encolerizo. Não choro mais. Se chego a rir, é frequentemente de mim mesmo.” Nessas palavras vejo que as experiências marcaram profundamente esse cirurgião de incontestáveis virtudes e de vida tão repleta de realizações. Confessa ter presenciado naquele incêndio coisas que superam os mais terríveis pesadelos. Uma multidão de 2.500 pessoas, na sua maioria crianças, sucumbiu ao fogo e à falta de atendimento adequado em vista das gigantescas proporções do desastre. O saldo foi de mais de 500 pessoas mortas e outras tantas vítimas irremediavelmente desfiguradas. Tragédia de dimensão inimaginável, o incêndio do circo parece ter ficado esquecido na nossa história. Confesso que nunca tinha sabido desse fato antes.
Naquele ambiente de absoluto tumulto, conta Pitanguy ter conseguido organizar um coletivo de médicos, enfermeiros e diversos voluntários que se dispunham a trabalhar, improvisando o que era necessário. Era preciso controlar a multidão. Era preciso por ordem no caos. Um hospital, cujos funcionários estavam em greve, foi reaberto para fazer funcionar um sistema de atendimento a todos os queimados. Entretanto, na memória do médico, permaneceu como um marco a história de um menino de 11 anos, surgido da espessa fumaça que formava uma muralha em torno das chamas. Gravemente queimado, parecia indiferente aos sofrimentos, com roupas em farrapos olhava para todos os lados procurando alguém. Uma enfermeira pergunta quem ele está procurando e ele responde: “Meu amigo.” Os lábios tremem, mas com olhar alucinado arremete-se novamente na direção do fogo e sem ouvir as ordens em contrário some no meio da fumaça para buscar o companheiro. Todos ficam petrificados, certos de que será impossível escapar novamente daquele inferno.
De repente, conta Pitanguy, um elefante surge do meio do incêndio arrastando panos incandescentes do circo e abre uma passagem entre as chamas. Novamente é possível ver o menino. Uma enfermeira corre então em seu socorro. Ele caminha penosamente, já no fim de suas forças, mas carrega quase desmaiado o amigo. Afirma o médico que a intrepidez e a abnegação do menino marcaram-no para sempre, pois arriscar a vida pelo outro é o mais nobre ato de um ser humano. Não há maior prova de amor que doar a vida pelo outro, ensinou há mais de 2 mil anos o mestre galileu. Naquele momento, fez o juramento de salvá-lo.
O menino, chamado Pablo, estava moribundo, as chances de salvá-lo eram praticamente inexistentes, mas durante mais de seis meses a equipe revezava em sua cabeceira, prodigalizando os cuidados que eram possíveis. Dos Estados Unidos vieram cerca de trinta mil centímetros cúbicos de pele liofilizada, doadas pelo Hospital Bethesda, reserva destinada aos feridos da marinha dos Estados Unidos. Para alimentá-lo eram necessários produtos dietéticos destinados a substituir os sais minerais que o organismo perdera. A pele liofilizada só pode ser utilizada após os enxertos homólogos devido à destruição do derma. Apesar de todos os cuidados, restava um pergunta: Pablo sobreviverá?
Arremata o médico que terra de crendices, de superstições e de fé, o Brasil é sensível aos signos e aos presságios. Certa manhã, uma religiosa foi ao seu encontro com seus passos miúdos, mas toda exaltada, fazendo o anúncio: “Pablo vai sobreviver, doutor.” Ao que ele pergunta: “De onde vem essa sua certeza, irmã?” E ela convida-o a segui-la para mostrar, após por o dedo sobre os lábios para pedir silêncio e muita cautela. “Olhe.” Sobre o parapeito da janela como a contemplar o menino Pablo adormecido, uma pomba permanecia imóvel. A irmã anuncia: “Deus a enviou para anunciar a sua cura!” Ao que ele se pergunta: “Deus ou os nossos cuidados?” Deixa eu responder depressa: Deus nos cuidados de uma equipe dedicada e solidária. O certo é que o menino se cura e aquela experiência muda para sempre o olhar do doutor sobre tudo o que é possível compreender e fazer neste mundo.
Se eu estivesse escrevendo um texto bíblico arremataria assim: “Quem tem ouvidos para ouvir ouça!” Como não escrevo nesse gênero, limito-me a partilhar mais essa inquietação e olhar nas oportunidades que a vida nos oferece, seja nos fatos, seja nas leituras, para buscar por detrás da fumaça o que efetivamente dá sentido às nossas vidas e o que pode nos ajudar a vencer o risco do preconceito pelo preconceito. O nosso corpo, principalmente a nossa face, mostra a nossa caminhada na travessia da vida. Se para uns os sinais do tempo ajudam, para algumas pessoas marcas tornam impossível a alegria de viver. É preciso harmonizar as marcas com a alma. Acima de tudo descobrimos que nada podemos sozinhos, o trabalho coletivo é o mais humanizador. Às vezes são os elefantes os que mais contribuem em meio aos incêndios. Podem as crianças demonstrar mais determinação, solidariedade e coragem que os adultos. Nos Estados Unidos também tem gente boa, e as pombas continuam, desde o episódio do dilúvio bíblico, anunciando que Deus está presente nas nossas vidas, ajudando-nos quando decidimos fazer o bem, apesar de todas as dificuldades. Todo preconceito tem o seu dia de se mostrar irracional!
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